28 novembro 2013

Adorável 'Jovem e Bela'

"Jovem e Bela", de François Ozon, conta uma temporada na vida de uma adolescente: Isabelle, 17 anos, tem seu primeiro namorico de verão e se prostitui no outono e inverno seguintes. Marine Vacth, a atriz, além de jovem e bela, é adoravelmente emburrada, como só os adolescentes franceses conseguem ser.
Aviso aos espectadores: entre ela, o comportamento de seus pais, a classe do colégio discutindo um poema de Rimbaud e a paisagem, o filme pode matar qualquer um de saudade de Paris e da França. Agora, alguns pontos (sem "spoilers").
1) O namorico de Isabelle durante o verão é sinistro, como a maioria dos namoricos de praia entre adolescentes. Isabelle olha para sua primeira transa como uma espectadora que não acredita na miséria do que está acontecendo. Cá entre nós, qualquer coisa é melhor e mais interessante do que aquilo --talvez até se prostituir num estacionamento.
2) Durante esse verão, Isabelle se irrita quando a mãe manifesta uma curiosidade bestamente cúmplice: cadê aquele jovem alemão bonito? Os pais adoram que os namoradinhos se incorporem ao cotidiano da família: eles esperam que o lar acabe domesticando o desejo sexual das filhas.
Mais tarde, no filme, Isabelle não aguenta a visão de seu novo namorado de pijama na mesa de família. Para completar, o namorado vai jogar videogame com o irmãozinho de Isabelle. Essa prática nefasta é frequente; conselho: meus amigos, decidam-se, cresçam ou caiam fora, joguem com o irmão ou namorem com a irmã.
Com a desculpa de que a rua de noite é insegura, os pais permitem e aprovam que muitos adolescentes brinquem de marido e mulher no seu quarto de crianças. O que tem de errado em deixar o namoradinho dormir com a namoradinha? Nada, mas é isso mesmo que se faz na casa dos pais: dormir --não transar. Para descobrir o que é sexo, é melhor sair de casa.
Por que condenar os adolescentes a começar sua vida sexual "em família", ou seja, dormindo?
3) Isabelle diz que ela podia até não gostar de se prostituir, mas, uma vez de volta ao lar, ela estava a fim de recomeçar. É uma definição perfeita da fantasia erótica: a realização pode não dar prazer, mas a gente fica a fim de recomeçar, sobretudo quando se afoga na mesmice.
4) Para encontrar clientes, Isabelle tem um perfil (sem rosto) num site. Receamos que a internet seja o paraíso dos predadores de crianças. Mas o inverso talvez tenha se tornado mais frequente: menores disfarçados como maiores se oferecem para sexo, por dinheiro ou não.
5) Engraçado. Podemos duvidar da maturidade de alguém de 17 anos para se prostituir ou mesmo para transar, a não ser que isso aconteça com o namorado de pelúcia --aquele que, de manhã, joga videogame com o irmãozinho.
Ao mesmo tempo, queremos que esse alguém de 17 anos, na escola, leia "Roman", que Rimbaud escreveu, justamente, aos 17 anos. Mathilde Mauté, a mulher de Paul Verlaine, tinha 17 anos e estava grávida quando Rimbaud, 17 anos, chegou na casa de Verlaine para começar a tórrida e famosa história de amor dos dois amigos.
Seria bom decidir um dia o que queremos e esperamos de um adolescente.
6) A partir de que idade, para nossas leis, um jovem pode livremente consentir a ter sexo com coetâneos e adultos? A idade do consentimento sexual, na França, é 15 anos. No Brasil, há muito tempo, ela é de 14. Aposto que muitos imaginavam que fosse mais tarde.
Tanto a lei francesa quanto a brasileira levam em conta uma vulnerabilidade dos jovens até os 18 anos. E considera-se que a prostituição se aproveite dessa vulnerabilidade. Ou seja, é permitido que um adulto transe com alguém de 17 anos que consinta por amor (por exemplo). Mas não se a transa for por dinheiro.
Não tenho nenhuma simpatia pela prostituição de adolescentes. Mas não deixa de ser bizarro: se a idade do consentimento é 14 ou 15 anos, por que a liberdade de se prostituir começaria só aos 18? Duas respostas possíveis.
A primeira é que somos ingênuos. Acreditamos que transar com alguém "por amor" não signifique se aproveitar de sua vulnerabilidade. Tendo a pensar o contrário: o amor, pretenso ou "verdadeiro", sempre foi uma arma para pegar inocentes desprevenidos.
A segunda resposta é que, apesar de nossa suposta liberação, somos escandalizados pela ideia de que haja desejo sexual e sexo sem a boa desculpa do envolvimento emocional. Eles podem transar porque se amam. Agora, transar só para transar é coisa de puta, não é?

21 novembro 2013

A favor do tédio

Alguns livros recentes tratam dos malefícios de nossa constante vontade de encontrar diversões. Como sugere o título de um deles, "The Distraction Addiction", de Alex Pang (Little, Brown and Company), a vontade de se distrair seria um vício, uma forma de dependência.
Também, desde o começo do ano, leio artigos de revista sobre "os surpreendentes benefícios do fato de sentir tédio".
Os livros não me pareceram imperdíveis. E os artigos nas revistas de grande circulação citam "pesquisas" por ouvir dizer. Mas tanto faz. O conjunto manifesta um novo clima, segundo o qual a necessidade de sermos entretidos e estimulados continuamente não tornaria nossa vida mais rica e variada --ao contrário, é possível que essa dispersão empobreça nossa experiência.
Já foi dito por evolucionistas que a sorte de nossa espécie foi sua fraqueza: enquanto passávamos horas a fio escondidos e calados nos arbustos, esperando as feras passarem, a imobilidade e o tédio forçados produziram o surgimento da consciência, do pensamento e da fantasia. Que tal aplicar essa hipótese no campo da educação?
O que é mais "educativo" para as crianças? A diversão? Ou a chance de se entediar?
Umberto Eco atribui ao filósofo Benedetto Croce uma frase que ele cita com frequência: "O primeiro dever dos jovens é o de se tornar velhos". Esse slogan não tem como ser muito popular numa época em que o primeiro dever dos velhos é o de eles parecerem jovens. De fato, nesta nossa época, os adultos não ajudam os jovens a envelhecer; eles preferem mantê-los na mesma criancice que eles desejam para si.
Há pais agentes de viagem e relações-públicas, que, a cada dia, organizam programas "divertidíssimos" para seus rebentos. Esses pais procuram amigos para brincadeiras coletivas e oferecem, a jato contínuo, coquetéis de televisão, cinema, compras, videogames e até livros: qualquer coisa para evitar que a criança conheça a solidão e o enfado. Sabe-se lá quais pensamentos surgiriam numa mente entediada, não é?
Certo, é preciso estimular as crianças para que elas se desenvolvam na interação com o mundo. Mas o problema é que, sem tédio maçante, ninguém, criança ou adulto, consegue inventar para si uma vida interior. E para que serve uma vida interior? Se forem pensamentos aos quais recorremos quando não temos nada para fazer, não é mais simples a gente se manter ocupado e não precisar da tal vida interior?
O problema é que há uma boa parte da vida exterior que, sem vida interior, é totalmente insossa. Tomemos o exemplo do erotismo.
Está aberta até dia 12 de janeiro, no Metropolitan de Nova York, a exposição "Balthus: Cats and Girls" (Balthus: gatos e meninas). O catálogo, com o mesmo título, contém uma excelente introdução da curadora, Sabine Rewald.
Balthus (1908-2001) pintava com frequência gatos e meninas, juntos ou separados. Os gatos são ótimos administradores de seu tédio. Eles sabem se divertir quando a ocasião se apresenta, mas também sabem não fazer nada. Nisso, eles batem os cachorros, que sempre parecem aliviados quando finalmente têm algo para fazer.
Agora, esse dom da gestão do tédio, os gatos têm em comum com as meninas que Balthus pinta, que são todas, antes de mais nada,
entediadas.
As longas sessões nas quais posavam para o pintor talvez servissem deliberadamente para produzir o tédio que Balthus queria pintar. Há as meninas quase vencidas pelo sono no meio da leitura, há as que jogam paciência no silêncio palpável da tarde numa casa de província francesa --todas parecem entregues a devaneios inquietantes.
A gente pode se indignar com a diferença de idade entre Balthus e suas modelos adolescentes, mas o fato é que os retratos das meninas são uma extraordinária ilustração de que o tédio e a indolência são as portas que levam aos pensamentos impuros.
Ou seja, é bem provável que a criança entediada tenha uma vida erótica adulta mais interessante do que a criança que cresceu de joguinho em joguinho, de amiguinho em amiguinho, de diversão em diversão.
O que me leva, aliás, a uma suspeita. Os pais que combatem o tédio dos filhos talvez estejam combatendo possíveis "pensamentos impuros" --videogames, filmes, amigos, tablets e futebol, tudo contra o espantalho da masturbação, que espreita a criança entediada e solitária.
Agora, sem pensamentos impuros na criança, o que será o erotismo do adulto no qual essa criança se tornará? Um erotismo sem vida interior, talvez.

14 novembro 2013

Arte fora de estação

A Bienal de Arte de Veneza dura de junho a novembro, a cada dois anos. Na semana de abertura, há inúmeras festas de inauguração --a maioria regada ao pior prosecco produzido na região do Vêneto e outras poucas em que a bebida e a comida são toleráveis.
Nessa época, Veneza é um formigueiro de artistas, críticos, investidores, jornalistas, curadores, cicerones para grupos de senhoras sedentas de experiências "avançadas" no campo da arte --e, embora não seja Carnaval, um número equivalente, se não maior, de pessoas disfarçadas de artistas, críticos, investidores, jornalistas etc.
Graças a essa fauna, a semana de abertura é ótima se você deseja encontrar ou consolidar sua fé na relevância da arte contemporânea.
É óbvio que os artistas se esforçam sempre para que sua obra, sua performance ou sua instalação constituam um evento. Ora, na semana de abertura, todas as categorias que citei se agitam para convencer o mundo de que a Bienal é mesmo um grande acontecimento.
Três gatos avançam sambando pela via Garibaldi? Pois é, a Bienal rende homenagem ao tropicalismo, ao pós-tropicalismo, ou ao pós-pós-tropicalismo. Tem alguém mugindo deitado num pavilhão dos Giardini? Pois é, assim se expressa a dor do mundo ou, por que não, a saudade do leite materno.
Agora, se você não precisar acreditar na arte contemporânea, arrisque-se a visitar a Bienal em novembro. Mesmo fora de estação, há turistas, artistas e, sobretudo, alunos: de manhã, é fácil esbarrar numa turma, levada por um par de professores.
Gilad Ratman apresenta o registro filmado da chegada de uma equipe de espeleólogos que penetram no pavilhão de Israel pelo esgoto, furando o chão; num outro registro, cada espeleólogo esculpe na argila seu autorretrato e começa a gritar com ou contra sua própria imagem. Os professores que acompanhavam a turma não propuseram interpretações nem apreciações. As crianças aprovaram. Aos 12 anos, como eu teria reagido?
Will Gompertz (no começo de seu ótimo "Isso é Arte? 150 Anos de Arte Moderna - Do Impressionismo Até Hoje", Zahar) conta que, em 1972, a Tate Gallery de Londres comprou uma obra feita de 120 tijolos, e a coisa deu protestos e controvérsias.
Trinta anos mais tarde, todo o mundo achou normal a compra de uma obra que consistia num pedaço de papel com as instruções caso alguém quisesse repetir uma performance. Entre as duas datas, uma mudança, não da arte, mas de gerações.
Não adianta eu ter escrito a profusão sobre o que aconteceu nas artes entre o século 19 e o 20. Assim como não adianta eu querer defender o "ready-made", o minimalismo, a "arte povera", o espacialismo ou a arte conceitual: quase irremediavelmente, eu sempre preferirei as obras que representam o mundo e contam uma história.
As crianças com que cruzei no pavilhão de Israel talvez sejam diferentes de mim, e, para elas, a arte possa ser um gesto, uma intenção, um conceito. É bom ou ruim? Não sei.
Seja como for, desta vez, as duas gerações, a minha e a das crianças, puderam gostar da Bienal. Explico: a Bienal de Veneza comporta os pavilhões (em que cada nação escolhe seus artistas) e uma exposição central organizada por um curador.
O de 2013, Massimiliano Gioni, escolheu o tema "O Palácio Enciclopédico" e realizou uma mostra inesquecível, que talvez ajude a entender por que se tornou difícil contar e representar.
No Arsenale, a mostra começa com a maquete do edifício projetado por Marino Auriti, um mecânico ítalo-americano que queria construir um arranha-céu que contivesse o registro de todo o saber da humanidade. Nos Giardini, a mostra começa com o original do "Livro Vermelho": 16 anos de "imaginação ativa" de Carl Gustav Jung, na tentativa heroica de explorar cada canto de sua própria mente.
No século 14, os 400 manuscritos da biblioteca de Francesco Petrarca eram o compêndio do saber humano. Pouco mais de cem anos mais tarde, os livros impressos se multiplicavam, uma incrível diversidade humana era revelada pelas grandes descobertas, e a própria Terra se perdia num universo infinito.
Hoje, a internet alimenta mais um sonho de palácio enciclopédico (virtual: todo nosso saber on-line), mas a sensação que prevalece (ao menos em mim) é que há cada vez menos totalidade possível --só fragmentos, numa expansão parecida com a do Big Bang.
Talvez por isso seja difícil, para as artes, contar histórias ou representar o mundo.

07 novembro 2013

Dia dos mortos e dia dos vivos

Mesmo estando em Veneza, não passei pelo cemitério de San Michele no dia dos mortos.
Se eu fosse até lá no dia 2, teria visitado um amigo dos meus pais, que mal se lembraria de mim, e alguns ilustres: Stravinsky, Joseph Brodsky, que é um poeta que me toca e escreveu um livro lindo sobre Veneza ("Marca d'Água", Cosac Naify), e Franco Basaglia, que desencadeou o movimento antipsiquiátrico, no hospital de Gorizia.
É provável que as visitas aos cemitérios se tornem cada vez mais raras. Além de um túmulo concreto, muitos já erigem monumentos virtuais para seus entes queridos, e visitar os mortos, no futuro, talvez signifique passear por um lugar virtual: rever fotos e textos, lembrar-se e deixar um pensamento (há sites para isso, cemitérios virtuais --peoplememory.com, por exemplo).
Na Itália, há também cemitérios reais em que, graças a câmeras filmando ao vivo, é possível visitar qualquer tumba virtualmente, sem sequer sair de casa (a coisa começou, aliás, com os cemitérios de lugares com forte índice de emigração, de modo que netos e bisnetos do outro lado do mar pudessem visitar "i nonni").
Mas a razão pela qual não visitei San Michele é outra. Especialmente em Veneza, para mim, os mortos não estão separados dos vivos. Claro, Napoleão chegou até aqui e instituiu os cemitérios (entre eles San Michele), proibindo que os mortos fossem sepultados perto dos vivos.
Mas meu pai pensava diferente de Napoleão; para ele, a presença dos mortos não tinha por que ser pavorosa ou insalubre --ao contrário, ela só enriquecia nossa vida.
Meu pai queria que eu me interessasse pelas pedras da cidade, por sua arte e por sua história. O jeito que ele encontrou foi me seduzir com histórias (algumas verdadeiras, outras --suspeito-- inventadas).
Em Veneza, há mais de uma rua dos assassinos, mais de um "malcantón" (canto ruim), mais de uma ponte do diabo ou dos esquartejados. De todos esses lugares, uma lenda explica o nome. Mesma coisa para cada pedra estranha no meio da calçada, cada busto de anjo ou de diabo num muro. Para quem cresceu ouvindo essas histórias, o passado é uma outra dimensão, quase presente, visível, e a cidade é povoada pelas sombras dos que foram.
Por exemplo, visitei a parte da Bienal de Arte que é apresentada no antigo Arsenal. Artistas contemporâneos mostram suas obras, inclusive ao ar livre, nas docas onde eram construídos os navios da República. Reis e poderosos, passando por Veneza, sempre eram convidados a festas no Arsenal, que duravam uma tarde, para eles constatarem que, numa tarde, Veneza conseguia construir um navio. Pois bem, no Arsenal, misturo-me à fauna variada da Bienal, mas nunca deixo de enxergar, no fundo, o trabalho dos obreiros que terminavam uma galera num dia só.
Uma vez, passeando pelas Fondamenta delle Zattere num fim de tarde, meu pai me mostrou o enorme edifício do moinho Stucky, abandonado. Ele apontou luzes trêmulas nas janelas escuras. Eu não enxerguei nada, mas aprendi que aquelas eram as chamas que assinalavam o lugar onde jazia a beata Giuliana de Collalto, esquecida na vala comum das freiras de seu mosteiro, no fim do século 13.
Nada demais, só que o mosteiro de Giuliana tinha sido demolido e, no seu lugar, surgia, justamente, o moinho Stucky, uma gigantesca oficina neogótica. Ora, em 1910, o próprio Stucky foi assassinado, e, em 2003, o moinho, antes de se tornar mega-hotel, sofreu um grave incêndio. Talvez tenha sido Giuliana de Collalto; talvez e mais provável, tenha sido a sombra de John Ruskin voltando para defender o gótico de sua Veneza amada contra o horror neogótico do Stucky.
Seja como for, no dia dos mortos, não precisamos visitar os cemitérios porque nossos mortos já estão entre nós (ou dentro de nós). E não é necessário ter medo: eles, em tese, estão do nosso lado e contra nossos inimigos. Por quê?
A melhor resposta é a de Cinqué, na versão que Steven Spielberg filmou da história do navio "Amistad".
No filme, Cinqué explica a John Quincy Adams (seu advogado) que ele chamará seus antepassados para que o ajudem na hora do processo no qual será decidido se ele ganhará sua liberdade de volta ou continuará escravo. Cinqué afirma com clareza e convicção que os antepassados não poderão deixar de vir para ajudá-lo, por uma razão simples: ele, Cinqué, é a única razão de eles terem existido.