29 março 2012

Como é uma vida sexual saudável?

Pelo DSM-5, você sofre de um transtorno se realiza seus desejos sexuais de duas a cinco vezes por semana

Isto, eu lembrei na coluna da semana passada: a ideia de que alguém possa ser viciado em sexo como numa droga nasceu nos anos 1970 -mais como reação moralista contra a liberação sexual do que como categoria clínica.

De fato, a sexo-dependência ("sexual addiction") fez uma rápida aparição no DSM-3 (a terceira edição do "Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais" da Associação Americana de Psiquiatria, publicada em 1980). A categoria sumiu da quarta edição e não estará na quinta, que será publicada em 2013 e já é conhecida, pois o texto está sendo debatido on-line.

Agora, o sumiço da sexo-dependência não significa que o DSM tenha renunciado a nos dizer como é uma vida sexual "saudável".

Em regra, a cada nova edição, o DSM convida psiquiatras e psicólogos a penetrar mais no dia a dia de nossa vida e a encarnar uma nova forma de autoridade, um híbrido de padre com policial.

A maioria das objeções à revisão em curso, justamente, protesta contra as mudanças dos critérios diagnósticos que baixam a barra do patológico, ou seja, que qualificam como doentios (e, portanto, precisando de tratamento) comportamentos e afetos que, até aqui, todos (pacientes e terapeutas) considerávamos banais e benignos.

Parêntese: subestimar o poder do DSM seria uma imprudência. Na grande maioria dos países em que os tratamentos dos transtornos mentais são cobertos pelos seguros de saúde, qualquer clínico, que concorde ou não com o manual, é obrigado a diagnosticar nos termos do DSM.

Voltando: se a categoria de sexo-dependência não está no DSM, será que cada um pode decidir livremente quanto sexo é bom para ele?

Nada disso. O DSM-5 prevê um "transtorno hipersexual", "um dos mais sérios transtornos psiquiátricos contemporâneos". Nele, fantasias e/ou atuações sexuais, por causa de seu simples excesso, teriam consequências adversas na vida de alguém. As adversidades encontradas pelo hipersexual são, além do risco de doenças sexualmente transmissíveis, as disfunções nas relações de casal e no ambiente de trabalho (por causa do uso de pornografia no escritório). Faz sentido, não é? Pois é, considere um exemplo.

Em 2008, Eliot Spitzer, governador do Estado de Nova York, perdeu seu mandato e seu casamento, quando foi revelado que ele era cliente assíduo de prostitutas desde a época em que, como procurador, ele perseguia ativamente as mesmas e seus clientes. Exemplo perfeito de transtorno hipersexual? É o que parece, mas pergunto (seriamente): Spitzer manifestava seu "desvio patológico" quando transava com prostitutas ou quando sentia a necessidade de perseguir e punir as prostitutas e seus clientes? A "doença", para ele, era o desejo sexual excessivo ou era a carreira pública hipócrita, atrás da qual ele escondia seu desejo?

O DSM-5 propõe também critérios quantitativos para o transtorno hipersexual. Seu transtorno é de severidade média, se você passa de 30 minutos a duas horas por dia ocupado por fantasias ou desejos e/ou se você os realiza (masturbando-se ou com um parceiro, tanto faz) entre duas e cinco vezes por semana.

Cá entre nós, tendo a pensar o oposto: se você NÃO for ocupado por fantasias ou desejos sexuais entre 30 minutos e duas horas a cada dia e/ou se você NÃO realizá-los entre duas e cinco vezes por semana, você vai encontrar ao menos uma consequência adversa: sua vida sexual de casal vai apodrecer progressivamente.

Não imagine que o DSM tenha intenções moralizadoras. Nada disso. O DSM é um perfeito exemplo do caráter abstrato do poder moderno: ele não promove valores, mas quer apenas controlar e regular. Por isso, seu ideal é que nada seja "normal", pois tudo o que for "normal" fugiria a seu controle.

No caso do sexo, se você não sofre de transtorno hipersexual, não cante vitória: provavelmente, você sofre de um "transtorno de desejo sexual masculino hipoativo" (ou de seu correspondente feminino).

Se você evitou os "excessos" da hipersexualidade e não quer ser hipoativo, saiba que não há critério fixo de hipoatividade; quem julga é o clínico, "levando em conta fatores (...) como a idade e o contexto da vida da pessoa" -sem mais.

Em suma, quer saber qual seria a quantidade certa e "saudável" de sexo na sua vida? Como não é mais moda perguntar para o padre, pergunte para o psicólogo ou o psiquiatra.Como diria minha avó: "Mamma mia!".

22 março 2012

Saexo e vergonha

Os que consideramos maníacos sexuais são apenas os que praticam mais sexo do que a gente

IMAGINE ALGUÉM que acaba sua noite com um sexo rápido e intenso, em pé, embaixo de uma ponte, e eis que, uma vez em casa, ele entra na internet e transa virtualmente com uma stripper de site on-line.

Não há gozo que lhe baste: sempre sobra a vontade de mais uma vez, mesmo que seja se masturbando com esforço. Outra noite, depois de ter brincado pesado com uma moça num bar, ele se pega com um cara no labirinto de uma boate gay: na procura por mais sexo, vale tudo.

Mas cada rosa tem seus espinhos. O disco rígido do nosso jovem está repleto de pornografia, até no computador do escritório -o que é arriscado. E, sobretudo, ele está aflito: a vergonha o leva a jogar fora (periodicamente) os apetrechos de sua sexualidade fantasiosa, e ele sente culpa de não conseguir ser o irmão, o amigo -e, quem sabe, o namorado- que ele talvez gostasse de ser.

Se esse alguém pedir ajuda a um terapeuta, alguns colegas tirarão da manga o "diagnóstico" de sexo-dependência ("sexual addiction") e proporão o programa em 12 passos (ensinado nas especializações em sexo-dependência), para que o indivíduo aprenda a se controlar e a renunciar, ao menos em parte, ao sexo, que teria se tornado, para ele, uma espécie de droga.

Mesmo sem acreditar nos 12 passos, outros colegas concordarão com o diagnóstico e simpatizarão com o "óbvio" sofrimento do "sexo-dependente" -afinal, eles imaginarão, essa prática endemoniada do sexo "deve", no mínimo, aviltar o indivíduo aos seus próprios olhos.

Outros colegas ainda (e eu com eles), ao receber o pedido de ajuda de um suposto sexo-dependente, reagiriam de maneira diferente: não se preocupariam nem com as fantasias, nem com as práticas sexuais do paciente, mas com a culpa e a vergonha que as acompanham.

Eu também anunciaria ao paciente que não sei (ninguém sabe) disciplinar o desejo sexual; só posso, se ele quiser, tentar disciplinar a culpa e a vergonha que azucrinam sua vida e estragam seus prazeres.

Quem viu "Shame" (vergonha), de Steve McQueen, percebeu que nosso paciente hipotético se parece com o protagonista do filme.

Em cartaz desde sexta passada, "Shame" é, ao mesmo tempo, ousado e careta. Ousado, pelo retrato da procura sexual do protagonista (muitos, sem dúvida, se reconhecerão), e careta, porque essa procura parece ser necessariamente doentia, culpada e vergonhosa.

Concordo com Cássio Starling ("Ilustrada" de 16/3): o filme é ótimo, mas discordo do destaque do artigo, segundo o qual "McQueen foge do moralismo ao abordar a compulsão por sexo". Quem enxerga o desejo sexual do outro como uma patologia é sempre moralista. Em matéria de sexo, patologizar é o jeito moderno de estigmatizar e policiar (conselho: fuja de parceiros que acham você "doente").

McQueen (na mesma "Ilustrada") declarou que o negócio dele é desafiar as pessoas. Ora, apresentar um obcecado por sexo como um doente que sofre de vergonha e culpa, isso não é desafio algum -ao contrário, é a confirmação de um lugar-comum.

Um lugar-comum confirmado por psiquiatria e psicologia? Nem isso.

Certo, desde o século retrasado, a psiquiatria e a psicologia são regularmente chamadas a substituir a religião, que (digamos assim) cansou de ser a grande ordenadora e controladora do comportamento humano. No caso, a ideia da "sexo-dependência" surgiu nos anos 1970 -provavelmente, como reação contra o interesse "excessivo" pelo sexo durante a dita liberação sexual dos anos 1960.

Mas, sentindo talvez o bafo do moralismo, muitos psiquiatras e a psicólogos receberam essa categoria diagnóstica com desconfiança. Quem a adotou e promoveu foram a imprensa e o grande público (e isso bastou para que surgisse uma pequena indústria de clínicas, programas universitários etc.). Mas por quê, então, esse sucesso popular da "sexo-dependência", na qual McQueen parece acreditar?

Apenas uma constatação: a associação de sexo com vergonha e culpa é um bordão cultural muito antigo, no qual somos convidados a acreditar por todo tipo de poder. A exigência de domesticar o desejo sexual parece ser, aos olhos de todos, um pré-requisito básico de qualquer ordem social.

Além disso, há a eterna inveja dos reprimidos: como dizia Alfred Kinsey, em regra, os que consideramos doentes e maníacos sexuais são apenas os que praticam mais sexo do que a gente.

15 março 2012

Micróbios dominadores

Os micróbios que vivem no nosso corpo podem influenciar nosso comportamento

Em 2010, nos "Annals of Epidemiology" (http://migre.me/8ftEa), li uma pesquisa que achei inquietante: ela confirmava uma dúvida que me assombrara por um bom tempo, a partir dos meus oito anos.

Com essa idade, aprendi que, mesmo sem estarmos doentes, somos habitados por bactérias, vírus, parasitas e fungos, que prosperam dentro de nosso organismo.

E me interroguei: esses micróbios, além de fazerem (eventualmente) com que a gente adoeça, não estariam dentro de nós como pilotos numa imensa espaçonave? Apesar de acreditarmos em nossa autonomia, quem sabe eles não estejam, de fato, no volante de nossa vida?

Justamente, os autores da pesquisa, Chris Reiber, J. Moore e outros, queriam saber se um vírus pode mandar em nós -não só alterar nosso humor, mas realmente influenciar nosso comportamento.

Eles descobriram que os infectados pelo vírus da gripe, durante o período da incubação (em que são contagiosos, mas não apresentam sintomas), tornam-se especialmente sociáveis. Em outras palavras, os infectados parecem agir no interesse do vírus, que é o de contagiar o máximo possível.

Claro, não é que os micróbios se sirvam da gente para levar a cabo um "plano" maquiavélico. Mas se entende, com Darwin, que um vírus que nos torne sociáveis durante a incubação só pode se dar bem na seleção natural, pois ele se espalhará facilmente. Ou seja, os micróbios mais eficientes seriam os que conseguem nos usar em seu interesse próprio, os que nos transformam em seus súcubos.

O que sobraria de nossa "autonomia" se todos os micróbios enquistados no nosso organismo influenciassem (silenciosamente) nossos pensamento e comportamento?

Kathleen McAuliffe, na "The Atlantic" de março (http://migre.me/8fwvb), conta a história de Jaroslav Flegr, um cientista que, há 20 anos, pretende que um parasita, o Toxoplasma gondii, manipule e transforme os que ele infecta.

O hospedeiro definitivo do Toxoplasma gondii é o gato, em cujo corpo o parasita se reproduz sexualmente. Seu hospedeiro intermediário típico é o rato, que se infecta ao ingerir o Toxoplasma (direta ou indiretamente) nas fezes do gato e, logo, ao ser comido por um felino, leva o parasita de volta para seu hospedeiro definitivo.

Agora, o Toxoplasma pode infectar qualquer mamífero, enquistando-se no tecido muscular e no cérebro. Nos humanos, ele é presente em 55% dos franceses (comedores de carne crua -claro, de boi infectado) e em 10 a 20% dos norte-americanos. Em tese, pouco importa, pois o Toxoplasma só seria perigoso na gravidez, quando produz malformações fetais. Mas será que esse é seu único efeito?

Há mais de uma década, descobriu-se que o Toxoplasma altera o comportamento dos ratos infectados, tornando-os atrevidos e fãs do cheiro da urina de gato (de que normalmente eles fugiriam). Ou seja, o Toxoplasma transforma o rato numa presa mais fácil para o gato, no estômago do qual o parasita quer acabar sua viagem.

Outra surpresa. Nos ratos (e só neles), o parasita pode ser transmitido por via sexual; ora, verifica-se que os ratos machos infectados são inexplicavelmente mais desejáveis aos olhos das fêmeas.

Um parasita capaz de influenciar o cérebro do rato, seu hospedeiro intermediário preferido, não teria efeito algum quando se instala no nosso cérebro?

Para começar, o Toxoplasma parece produzir em nós alguns efeitos parecidos com os que ele produz nos ratos: por exemplo, muitos humanos infectados passam a achar agradável o cheiro da urina de gato. Nada dramático: a gente é raramente comido por gatos (mas resta a pergunta: se você adora gatos, é porque gosta mesmo ou porque carrega o Toxoplasma gondii no seu cérebro?).

Há mais: a presença do Toxoplasma gondii no cérebro alavanca a produção de dopamina, um neurotransmissor cujo excesso é um dos fatores no conjunto de causas possíveis da esquizofrenia (http://migre.me/8fxYX).

Enfim, o fato é que estamos começando a descobrir que os micróbios aparentemente inócuos que vivem no nosso corpo podem influenciar nosso comportamento.

Não acredito que sejamos os títeres de germes, parasitas, fungos e vírus, mas, certamente, o ambiente que nos constitui e determina não é só o das interações com nossos semelhantes. É também o de interações misteriosas com seres que sequer enxergamos. Inquietante, hein?

08 março 2012

Morte na avenida Paulista

Perto de onde Juliana morreu, uns idiotas tiram um fino de um ciclista, gritando: "Sentiu o vento?"

Na manhã da sexta passada, Juliana Dias, 33, circulava de bicicleta pela avenida Paulista, entre a faixa preferencial do ônibus (à direita) e a faixa de carros -ou seja, no lugar certo, se é que existe um lugar certo para ciclistas em São Paulo.

As testemunhas contam que, perto da rua Pamplona, ela foi fechada, primeiro por um carro (quem sabe o motorista tenha achado engraçado), logo, por um ônibus. Ela gesticulou e protestou. Nessa altura, segundo uma das testemunhas, de novo, intencionalmente, o ônibus foi para cima de Juliana, que caiu e foi esmagada por um segundo ônibus, que, de fato, não teve culpa.

O motorista do primeiro ônibus foi preso por homicídio culposo (não intencional) e, hoje, ele já está em casa (por sorte nossa, no momento, ele não dirige). Se for verdade que ele fechou Juliana de propósito, ele deveria ser acusado de homicídio doloso -com a intenção de matar.

Segunda, não longe de onde Juliana morreu, na alameda Santos, um idiota do volante passou bem perto de uma bicicleta, acelerando forte, enquanto seu passageiro gritava para o ciclista apavorado: "Sentiu o vento?". Talvez o motorista e seu passageiro temessem ser tão insignificantes quanto um sopro de vento e se consolassem ao ver que, por um sopro, alguém podia se sentir ameaçado.

Da mesma forma, há homens impotentes que se esfregam contra mulheres no metrô lotado: esperam confirmar sua virilidade duvidosa graças à reação indignada que eles suscitam.

Em 1949, W.A. Tillmann e G.E. Hobbs publicaram um dos primeiros estudos de psicologia do trânsito, "The Accident-Prone Automobile Driver - A Study of the Psychiatric and Social Background" (o motorista propenso a ter acidentes - estudo do pano de fundo psiquiátrico e social, "American Journal of Psychiatry", 1949; 106, acesso via http://migre.me/8ae8f). Na hora de autorizar alguém a dirigir, antes de testar seu tempo de reação ou sua visão etc., sugeriam os autores, deveríamos saber quem ele é.

Concordo, em tese: carros, caminhões ou ônibus são armas e, para outorgar um porte de armas, não verificamos apenas que o beneficiário tenha pontaria -queremos saber quem ele é.

O problema é que, na prática, selecionar motoristas por via médico-psicológica significaria quase sempre promover os preconceitos do dia. Por exemplo, Tillmann e Hobbs propunham um perfil do motorista perigoso, que, além de ser instável, insubordinado, imediatista etc., viria "de um lar marcado pelo divórcio dos pais". Tudo bem, hoje, negar a carteira aos filhos de divorciados seria a solução definitiva ao problema do trânsito.

Perfil a parte, Tillmann e Hobbs notaram, justamente entre os motoristas de uma companhia de ônibus, que uma mesma minoria era responsável pela maioria dos acidentes, ano após ano.

Talvez esses motoristas minoritários correspondessem ao perfil que Tillmann e Hobbs tentavam definir. Ou talvez a explicação psicológica da perigosidade no trânsito seja outra (por exemplo, em 1969, Stephen Black, http://migre.me/8ae0k, escrevia que, aparentemente, todos os motoristas são "do bem", mas seu inconsciente é sempre psicopata; numa linha parecida, outros diriam que dirigir é o jeito mais fácil e brutal de compensar qualquer insegurança social e privada).

Seja qual for a explicação, Tillmann e Hobbs mostraram que, fichando cada motorista de uma companhia de ônibus e adicionando constantemente, nessas fichas, o número de acidentes (mesmo menores), as denúncias telefônicas do "como estou dirigindo?" e as infrações relativas à direção arriscada, seria possível chegar a um índice de perigosidade que afastasse do volante aquelas pessoas que nunca deveriam ter se sentado atrás dele.

O afastamento, segundo eles, deveria ser definitivo ou quase: para que um motorista propenso ao acidente se torne um motorista seguro, ele precisaria mudar caraterísticas profundas de seu caráter (possibilidade remota).

Tillmann e Hobbs quiseram mostrar, em suma, que os acidentes não são apenas fruto do acaso e efeito de imperícia ou de bobeiras ocasionais; muitas vezes, os acidentes "refletem a personalidade básica do indivíduo que dirige". E essa ideia ainda não foi levada a sério.

Agora, se Juliana foi mesmo fechada propositalmente por um ônibus, ela não foi vítima do acaso nem da imperícia nem da bobeira ocasional de ninguém.

01 março 2012

Fé na medicina

Quem diz se uma mulher apresenta ou não "condições psicológicas de arcar com a maternidade"?

A comissão do Senado Federal que projeta a reforma do Código Penal apresentou publicamente sua proposta (reportagem de Flávio Ferreira na Folha de sábado). O capítulo dos crimes contra a vida trata de eutanásia e aborto (resumo das mudanças: http://migre.me/845Dp).

Sem entrar na complexidade moral das questões, o que me impressiona, na primeira leitura, é a facilidade com a qual a medicina é (sempre) chamada a regulamentar nossa vida.

A liberdade é uma conquista, mas é também um fardo. Para aliviá-lo, faz 200 anos que inventamos um truque, graças ao qual, nos dilemas morais, 1) conseguimos afirmar que estamos decidindo sem obedecer a ninguém (nem a textos sagrados, nem a autoridades morais e religiosas) e, ao mesmo tempo, 2) evitamos o exercício (aflitivo) de nosso foro íntimo. Qual é o truque? Como Michel Foucault cansou de repetir, o truque consiste em deixar as decisões para ciências e disciplinas que administram nossa vida em prol de nossa saúde (e, portanto, para o nosso bem, não é?).

Por exemplo, na reforma proposta, o aborto não seria crime: "Por vontade da gestante até a 12ª semana da gestação, quando o médico constatar que a mulher não apresenta condições psicológicas de arcar com a maternidade".

Só para começar, o requisito de que seja respeitada a vontade da gestante é uma ideia simpática, mas, infelizmente, problemática.

Há gestantes que suplicam para serem liberadas da gestação, cujas sensações lhes são intoleráveis. Algumas conseguem abortar, mas se culpam e entenebrecem até o fim da vida. Outras levam a gravidez a termo no desespero e no ódio ao feto que carregam como se fosse "Alien, o Oitavo Passageiro". Muitas dessas, no fim, choram de alegria e agradecem que ninguém as tenha escutado quando pediam para abortar.

Inversamente, uma mulher raramente pede para abortar no caso mais certeiro em que ela não teria "condições psicológicas" de ser mãe.

Lembro-me de uma mulher encontrada na banheira de sua casa, cantarolando e brincando com sua bebê morta afogada. Não é muito raro: entre uma e duas mulheres em cada mil partos passam por uma psicose puerperal -ou seja, uma psicose transitória desencadeada pelo parto. Entre elas, há mulheres que, recuperadas, tentam com sucesso outra gravidez. Quanto à mulher encontrada na banheira com seu brinquedo inerte, dois anos antes, ela tinha tido outro bebê, que morrera (misteriosamente) de "morte súbita", no berço.

Quando ela deixou o hospital (livre, pois na hora do infanticídio ela era incapaz de entender e querer), tentamos dissuadi-la de uma nova gravidez. Voltou meses depois, toda feliz, para mostrar à equipe que estava grávida de novo.

Os que viram aquela mulher brincando na banheira pensavam que deveríamos impor um aborto sem o consentimento da gestante. Os que não a viram pensaram que, no fundo, não havia como excluir completamente que a nova gravidez fosse o prelúdio de uma maternidade feliz. Hoje, não sei de que lado eu me situaria.

Naquele caso, os favoráveis ao aborto por falta de "condições psicológicas" podiam invocar os antecedentes e talvez prevalecessem num debate. Mas, na ausência de antecedentes, quem poderia mesmo constatar que uma mulher "não apresenta condições psicológicas de arcar com a maternidade"?

Em tese, o psiquiatra e, mais ainda, o psicólogo (porque, numa avaliação prognóstica, é útil recorrer a testes projetivos e de inteligência emocional e cognitiva). Mas não vai ter briga: psiquiatras e psicólogos só lutarão por essa duvidosa prerrogativa se eles precisarem muito pagar as contas do fim do mês.

Obviamente, "o médico" (genérico), sugerido pelo texto da proposta, não teria treino algum para avaliar psicologicamente as gestantes.

Mas se entende que, no texto da proposta, "o médico" não é mencionado por sua suposta competência; ele é invocado como a entidade para a qual delegamos nossa incômoda liberdade moral. Algo assim: não sabemos se, quando e como o aborto deveria ser criminalizado ou não, mas chamem o médico, e que ele decida, na base de suas avaliações "científicas".

Ou seja, não vamos discutir, entre nós ou dentro de nós, sobre o que é certo e o que é errado; é muito mais fácil remeter nossa vida nas mãos de quem nos diz o que é "saudável" ou não.

PS: Para uma reflexão complementar, veja-se este post no blog de um psiquiatra, Leandro Gavinier (http://migre.me/846qf).