28 agosto 2008

Olimpíada e diários de guerra


Zapeava entre notícias e esporte; a mestria dos atletas me consolava da desordem do mundo

A GUERRA na Geórgia começou durante os Jogos Olímpicos, que, em tese, deveriam ser um tempo de trégua. De fato, nenhum conflito parou durante as semanas de Pequim: Afeganistão, Iraque, Darfur... a lista é longa. Geralmente, a idéia da trégua olímpica é entendida assim: se é para os povos se enfrentarem, melhor que seja por atletas interpostos, como generais que resolvessem a batalha com um duelo entre si, poupando povos e exércitos. Nessa linha, imagino facilmente a emoção do lutador georgiano que ganhou uma medalha de ouro, mas não é isso que me toca no espetáculo da Olimpíada. Acho um pouco ridículo, aliás, o "ranking" das nações, assim como o grito dos comentadores: o ouro é "do Braaaaaaasil". O ouro, a prata, o bronze (e a simples presença na Olimpíada), para mim, são dos atletas -só deles. Não me sinto honrado por pertencer à nação que eles representariam. O que me comove é a gesta deles, não o hino nacional que toca quando sobem no pódio. Nas noites olímpicas, eu não parava de zapear entre os canais de notícias (guerra, tensão, eleições americana e brasileira) e os canais de esporte. Aparentemente, meu prazer estava no ato de zapear. Por quê? A performance dos atletas é um exercício de clareza e de controle de si. Certo, para a maioria, o caminho até lá é uma gincana de sacrifícios, conflitos familiares, dramas íntimos e buscas de patrocínio. Mas, no momento do salto, do saque, da evolução, da corrida ou da luta, o mundo se simplifica até reduzir-se àquele instante em que tudo vai depender do próprio atleta (enfim, quase tudo: veja-se o sumiço da vara de Fabiana Murer). É o contrário do que acontece no noticiário, do qual entendemos o que podemos (menos do que gostaríamos), mas isto constatamos: o que acontece pelo mundo afora nos escapa e nos atropela. Mentiras, interesses confessos ou inconfessáveis, paixões coletivas insensatas, bolsas e mercados que sobem ou descem: nossa vida coletiva, do bairro até a ONU, parece sempre fora de nosso alcance. A invenção democrática não melhorou a situação: a vontade dos déspotas foi substituída por forças tão brutais quanto, só que mais complexas e misteriosas. Pois bem, zapeando entre a Olimpíada e o noticiário, era como se a mestria dos atletas me oferecesse uma pequena trégua na desordem do mundo. Contemplar os atletas me dava um prazer parecido com aquele que encontro lendo a história de "Tom Jones" (de Henry Fielding) ou de Fabrizio na "Cartuxa de Parma" (de Stendhal): há indivíduos que conseguem inventar sua vida, embora atropelados pelo barulho, pela fúria e pelo pouco sentido da História com H maiúsculo. Justamente, acabo de ler "Vozes Roubadas" (Companhia das Letras): é uma antologia de diários de guerra escritos por crianças, desde o começo do século 20 até hoje. As curadoras são Melanie Challenger e Zlata Filipovic, cujo "Diário de Zlata" (redigido entre os 11 e os 13 anos) foi, para a família Filipovic, nos anos 90, o passaporte para sair do inferno de Sarajevo. Comecei a leitura com desconfiança, pois não acredito muito na oposição entre "inocência" infantil e horror do mundo adulto. Mas o efeito da leitura foi outro: os diários das crianças revelam quanto nós mesmos somos perdidos na História. O livro começa com o diário da menina alemã Piete, que escreve durante a Primeira Guerra Mundial. Do entusiasmo patriótico à descoberta da injustiça e do horror, Piete é sacudida pelos eventos exatamente como os adultos ao redor dela: suas anotações são comovedoras não tanto pela ternura que nos inspira o destino de uma menina em tempos sombrios, mas porque Piete nos lembra que 1) somos todos crianças no meio de tempestades quase incompreensíveis e incontroláveis; 2) mesmo na tempestade, é possível preservar a dignidade e a grandeza da vida -por exemplo, reconhecendo que ela vale a pena ser contada num diário. Meu filho Max está nos EUA e gosta de escrever perfis de personagens esmagados pela História do mundo. Ele me falou sobre um menino que pede esmola nas ruas de Nova York com o cartaz: "Like Obama, I want change" -ou seja, aos ouvidos americanos: como Obama, "quero mudança", mas também "quero um trocado". Pois é, "Vozes Roubadas" fala disto, do trocado (é pouco, mas é alguma coisa) com o qual ficamos, crianças e adultos, nas nossas vãs tentativas de sermos parte da História.

21 agosto 2008

César, Diego e nós



O desejo da gente não é definido, fixo. Ele não precisa ser "descoberto", mas inventado

AS LÁGRIMAS de felicidade de César Cielo me comoveram. Também me comoveu a consternação de Diego Hypólito depois da queda que o privou da medalha olímpica.

Anos de dedicação e controle de si acabaram, para César, num momento em que ele nadou como nunca e, para Diego, num erro inesperado. César tinha dificuldade em acreditar que seu sonho estava acontecendo. Diego repetia: "Não acredito que perdi".

Com um amigo, domingo à noite, conversamos sobre o que faz o estofo dos campeões.
Evocamos aquela idéia da sabedoria popular que faz sucesso na literatura de auto-ajuda (por exemplo, "O Segredo", livro e filme) e que diz o seguinte: descobrir o que a gente deseja e desejá-lo ardentemente é bom e eficiente, pois quem deseja muito, mais cedo ou mais tarde, realiza suas aspirações.

Na mesma veia, organizar nossa existência ao redor da ocupação da qual a gente mais gosta parece ser o jeito de matar a charada da vida.

"Logicamente", com a paixão pelo ofício de cada dia ("adeus depressão"), serão multiplicadas as chances de sucesso (merecido, pois, no caso, só poderemos nos entregar a nossas tarefas com o maior afinco e com prazer).

É fácil entender de onde vem essa idéia. Você passa o dia aflito, correndo atrás das complicações de seu trabalho e de seus deveres e, quando, à noite, coloca em ordem sua coleção de selos, pensa em desistir de tudo e abrir uma lojinha filatélica.

Movido por sua paixão, quem sabe você escreva, enfim, o novo catálogo definitivo dos selos da Colônia, do Império e da República do Brasil; logo, a lojinha crescerá até se tornar o grande centro on-line de troca, comércio e avaliação de selos nacionais.

Mas há um problema: essa idéia é ingênua. Não tanto por ela subestimar as dificuldades eventuais de sua lojinha filatélica, mas por duas razões fundamentais:

1) O desejo da gente não é um desejo definido, que seria "o nosso" (como uma espécie de DNA psíquico) e que se trataria de descobrir e logo seguir à risca. O episódio bíblico do pecado original é uma boa metáfora da condição humana. Todas as necessidades estavam satisfeitas no Paraíso terrestre, e fomos querer um fruto que não sabíamos direito o que era: a humanidade (pecadora, claro) surge quando começamos a desejar além do que satisfaz nossa necessidade de sobrevivência. Como nosso desejo não é regrado pela necessidade, ele é variável, não depende do valor intrínseco dos frutos desejados, nem da singularidade de nosso paladar, mas de nossos vínculos com os outros: no caso, com as Evas que nos seduzem ou com a vontade de transgredir a ordem divina. Conclusão: nosso desejo é o fruto volúvel das ocasiões, das circunstâncias e, sobretudo, das relações com nossos semelhantes; ele é uma disposição que INVENTAMOS -não que DESCOBRIMOS.

2) Inventar um desejo não é nenhuma garantia de talento. É possível desejar ser nadador, ginasta ou filatélico sem ter talento para nenhuma dessas atividades. Em tese, isso não teria que ser um drama, visto que poderíamos procurar (ou melhor, inventar) outro "fruto" desejável, mais compatível com nossas aptidões. Mas não funciona assim. Na parábola bíblica, o nosso gosto pelos frutos proibidos indica que, em geral, preferimos desejar o que está fora de nosso alcance, por ser objeto de interdito ou, justamente, por ser irrealizável à vista de nossas modestas habilidades. Ou seja, em vez de desejar de galho em galho segundo as ocasiões e conforme nossas aptidões, preferimos almejar o impossível. O aspirante filatélico sofre de uma sudorese que estragaria qualquer selo; o aspirante literato não gosta de ler, e por aí vai: gostamos de visualizar futuros que nunca chegarão.

Pois bem, os campeões, ao menos durante um tempo de sua vida, focam seu desejo, ou seja, persistem em desejar apenas uma coisa. Até aqui eles são parecidos com a gente.

Só que, diferentes da gente, eles se autorizam a desejar uma coisa que é difícil, mas que não lhes é impossível: desejam a excelência num ofício para o qual eles têm talento. Restaria se perguntar por que um campeão pode falhar. Pois bem, até os campeões precisam daquela coisa que faz com que, um dia, milagrosamente, a disposição, o humor, a temperatura, o brilho do sol ou o barulho da chuva conspirem para que tudo dê certo. Ou seja, precisam de sorte. Boa sorte a Diego nos próximos Jogos Olímpicos.

14 agosto 2008

Sexo "artístico"



No cinema, o sexo é um bailado de corpos que se exercitam, com luz e música apropriadas

COM FREQÜÊNCIA (crescente?), o sexo, no cinema, consiste em cenas intermináveis nas quais fragmentos de corpos, enquadrados de maneira que não se sabe mais se são nádegas ou seios, movimentam-se numa luz suave e com uma trilha sonora que é uma espécie de Galvão Bueno da "transa" -só que mais previsível que o apresentador global.

Talvez se trate de um efeito da censura ou da autocensura: o disfarce "artístico" vale como pretexto para que a gente se autorize a mostrar coisas que, sem isso, pareceriam proibidas.
O fato é que, em geral, esse sexo "artístico" me causa um mal-estar.

De repente, passo a contemplar (no escuro) a ponta de meu sapato, como um adolescente que estivesse na companhia dos pais. Mas não é por pudor infantil: no cinema, uma cena de sexo que seja pornográfica ou simplesmente realista não me causa mal-estar algum, e, quer eu goste ou não, sigo olhando para a tela.

De onde vem, então, minha dificuldade com o sexo "artístico"?

Uma amiga gostava de um homem bonito e "sarado". Quando se deitaram juntos pela primeira vez, havia um grande espelho ao lado da cama.

No meio das escaramuças, o homem olhava insistentemente para o espelho. Minha amiga pensou que ele devia achar excitante a visão dos dois corpos nos gestos do amor, mas logo ela notou que o homem não parava de flexionar seus tríceps verificando, no espelho, a definição de seus músculos. Minha amiga perdeu o entusiasmo; esperou, educadamente, que a transa acabasse e nunca mais encontrou o homem.

"O que foi?", perguntei, "você ficou com ciúmes dos olhares apaixonados que ele reservava para seu próprio corpo?". "Não", respondeu minha amiga, "só fiquei com a sensação de que a gente estava na academia. E aí perdi o embalo".

Pois bem, no cinema, as representações "artísticas" do sexo me fazem um efeito parecido: é como se o descontrole do corpo erótico (que, claro, concordo, pode ser obsceno) fosse substituído quer seja por um bailado de corpos higienistas que se exercitam, quer seja por uma câmara lenta de músculos e pele, que parece ambicionar o estatuto de obra de arte abstrata.

Em suma, no estereótipo cinematográfico, o sexo parece mais estético, saudável e pretensamente poético do que extático.

Ora, o sexo não é nada disso, e torná-lo "artístico" não é apenas um jeito de representá-lo, é também um jeito de domesticá-lo, de regrá-lo.

Acaba de ser publicado em português mais um seminário de Michel Foucault, o de 1978-79, "Nascimento da Biopolítica" (Martins Fontes).

Talvez seja a única ocasião em que Foucault analisou diretamente o poder do Estado no mundo contemporâneo. Como sempre, Foucault é genial: ele aponta o ideal do Estado contemporâneo na "frugalidade" (ou seja, no menor governo possível), enquanto o exercício do poder é delegado a mecanismos que triunfam por seu caráter aparentemente natural e incontestável. Exemplo fundamental: o Mercado, que, sem intervenções externas, produziria os preços e os custos "verdadeiros" -só pelo livre jogo dos agentes econômicos. Em outras palavras, no exercício do poder moderno, não é preciso mandar: basta mostrar a "naturalidade" do óbvio.

O seminário termina antes que Foucault consiga tratar propriamente do poder na gestão da vida cotidiana, mas entende-se que ele funciona da mesma forma, graças a reguladores implícitos, que se impõem por sua suposta e "óbvia" naturalidade. Por exemplo, quem negará que a vida saudável, a harmonia e a higiênica limpeza são valores "naturalmente" benéficos?

Então por que seríamos reféns da "feiúra" da concupiscência, quando é possível (como sugerem as cenas artístico-eróticas do cinema) viver orgasmos lindos e simultâneos, quem sabe ritmados pelo coro da "Nona Sinfonia" de Beethoven?

Sem contar que, com luz e música certas, também parece óbvio que o sexo possa espontânea e naturalmente conviver com o amor. Não é?

P.S. A vantagem do teatro sobre o cinema é que, no teatro, a estetização sanitarista do sexo é mais difícil, pela presença física do corpo dos atores e pela falta de enquadramentos parciais. Como contraponto ao sexo "artístico", freqüente no cinema, quem estiver em São Paulo ou passar por aqui pode assistir a uma peça: "Pornografia Barata", de Mauricio Peroni de Castro, em cena no Espaço dos Satyros (às 21h nas sextas e sábados até o fim de agosto, depois disso à meia-noite).

07 agosto 2008

Homens grávidos



Um transexual mulher-para-homem se casa e engravida. Felicitações ou indignação?

TRACY LAGONDINO nasceu mulher, anatômica e juridicamente. Mas cresceu sofrendo, aprisionada num corpo com o qual não concordava, um corpo que desmentia sua certeza de ser homem.

Para entender, pense na anoréxica que, magérrima, olha-se no espelho e acha sua carne revoltante, excessiva: "Esta carcaça não sou eu". Ou lembre-se do começo de "A Metamorfose", de Kafka, quando Gregor Samsa descobre estar preso num corpo de barata.

Dez anos atrás, aos 24, Tracy pediu para mudar de gênero. Removeu cirurgicamente seus seios e começou a tomar injeções bimensais de hormônio masculino. Sua voz e a forma de seu corpo mudaram. A barba cresceu. Claro, Tracy parou de menstruar, mas não se submeteu à operação que retiraria seus órgãos reprodutores e implantaria uma prótese parecida com o pênis. É uma decisão freqüente nas mudanças de gênero de mulher para homem, pois as próteses são imperfeitas, sobretudo no que diz respeito à função urinária.

O fato é que Tracy sumiu e, no seu lugar, apareceu Thomas Beatie, juridicamente homem. Logo, Thomas se casou com Nancy, uma mulher. Eles quiseram ter filhos (obviamente, recorrendo ao esperma de um doador), mas Nancy, por razões médicas, tivera que retirar seu útero.

Thomas, que havia guardado seus órgãos reprodutores femininos, suspendeu as injeções de hormônio masculino e voltou a menstruar. Ele, o homem da família, fecundado artificialmente, engravidou na segunda tentativa e, há um mês, por parto normal, deu à luz uma menina, Susan. Tudo isso, sem cortar a barba.

Nancy, à força de hormônios e bomba aspirante, consegue estimular sua lactação e amamentar Susan, ao menos em parte.

Essa história não é única. Por exemplo, um casal de transexuais mulher-para-homem viveu uma experiência análoga, oito anos atrás. Mas isso foi em San Francisco (uma ilha de tolerância), enquanto Thomas e Nancy vivem no Oregon: eles encontraram uma resistência ferrenha. Um médico irritado disse a Thomas: "Ao menos, tire sua barba". Praticaram a primeira e fracassada fecundação artificial artesanalmente, com uma seringa veterinária.

No site do "The Times" (www.timesonline.co.uk), a notícia recebeu uma enxurrada de comentários, num leque que vai das felicitações ("O bebê é lindo! Espero que consigam todos carregar o fardo de sua diferença com força e amor, rezo para que Deus proteja sua viagem") até a indignação absoluta: "Isso é doente. O que vocês fazem com essa pobre menina é errado... Onde chegou nosso mundo?... Deveria haver leis contra isso". De fato, até pouco tempo atrás, havia leis contra isso. Hoje, ao contrário, inclusive no Brasil, há leis para amparar e permitir a vida e o desejo de quem sofre de uma discordância dolorosa entre seu sentimento de identidade e seu corpo.

Especialistas em transtornos de gênero comentaram sobriamente.

No "The Guardian", um psiquiatra, James Barrett, observou que é difícil, para um transexual mulher-para-homem, passar por uma gravidez, pois a experiência contradiz sua nova identidade. Thomas, no programa de Oprah, na TV americana, fez um comentário que indica a solução que ele encontrou para esse dilema: disse que o desejo de procriar não é nem masculino nem feminino, é humano.
E um psicanalista, Robert Withers, interrogado sobre o futuro de Susan, declarou que ela apenas encontrará "um pouco mais de complicação" na hora de se perguntar "de onde venho?".

Agora, entendo que alguns lancem anátemas contra um acontecimento que lhes parece contrariar a ordem "natural" ou estabelecida das relações, das identidades e das funções.

Mas a história de Thomas, Nancy e Susan poderia nos lembrar que, há mais ou menos 250 anos, quer a gente goste ou não, entramos na era da condicionalidade. Como assim? Pois é, começou com os casamentos, que duram "à condição" que dure o amor. Continuou com as leis, que são respeitadas "à condição" que elas nos pareçam justas. Aos poucos, não há norma que escape à postila que limita sua autoridade acrescentando: "Sob con- dição que meu foro íntimo aprove e que, ao obedecer, eu não me desrespeite".

Sou homem ou mulher à condição de me sentir intimamente homem ou mulher. Sou filho à condição que o pai e a mãe se comportem de maneira que eu os reconheça como pai e mãe.
Falando nisso, nada prova que Thomas não possa ser um bom pai para Susan. Ou uma boa mãe. Ou os dois.