29 março 2007

O "mea-culpa" pela escravatura

As desculpas retroativas pela escravatura parecem ser sinais da volta do racismo

O REINO Unido celebra os 200 anos da abolição do comércio de escravos. Tony Blair expressou seu pesar pelo antigo papel dos britânicos no tráfico.

Como assinala Marco Aurélio Canônico na Folha do dia 24, os aniversários anteriores passaram sem destaque especial. O historiador John Oldfield, citado por Canônico, atribui o interesse atual pelo aniversário às mudanças na sociedade britânica: o "mea-culpa" seria um jeito de agradar às massas de imigrantes das ex-colônias, facilitando sua integração. Quem dera...

O processo da abolição da escravatura é uma longa jornada da consciência ocidental; começou nos primeiros séculos da cristandade, com o sucesso da idéia de que o limite da humanidade não é a tribo, a raça ou a fé, mas é a própria espécie: somos irmãos, simplesmente por sermos humanos. Hoje, por um sentimento espontâneo e imediato, qualquer ser humano é "dos nossos". No passado e em outras culturas, já foi e ainda é banal considerar que nosso semelhante é só quem dorme na toca da gente.

A idéia de uma comunidade da espécie humana é uma invenção, se não exclusiva, no mínimo peculiar da cultura ocidental. E, sem essa idéia, vinga a tentação de usar e possuir o outro (diferente e, portanto, subumano) como um objeto.

Em suma, o aniversário do dia 25 deveria ser uma festa para todos - no caso, todos os cidadãos e residentes do Reino Unido, celebrando juntos sua igualdade de princípio.

Ora, as desculpas pela escravatura sugerem uma divisão: de um lado, há os "descendentes de escravos", do outro, os "descendentes de escravocratas". É curioso, pois, na modernidade ocidental, presume-se que ninguém se defina como "descendente de": se somos todos humanos, indiferentemente, é também porque somos definidos não pelo passado, mas por nossas potencialidades futuras.

Entende-se que os ditos "descendentes de escravos" (cuja cultura de origem pode ser escravocrata) sejam, eventualmente, enredados numa divisão subjetiva dolorosa: aderir à cultura que os acolhe como cidadãos (porque, para ela, só há homens livres) significa renegar sua tradição.

Mais complicado é entender as desculpas dos ditos "descendentes de escravocratas", pois qual é o sentido da desculpa retroativa de quem não se define pelo seu passado?

Versão otimista: hoje, por termos "evoluído", enxergaríamos o horror de um passado que não nos define, que não é o da gente, mas que, afinal, carregava nosso nome.

Tony Blair não tem nada a ver com os ministros dos séculos 17 e 18, salvo a referência comum a um "Reino Unido" que, aliás, não é mais o mesmo país.

Versão realista (a de Oldfield): as desculpas constituem uma homenagem (forçada) aos imigrantes, que são os novos cidadãos do Ocidente.

Minha versão é pessimista. A necessidade de se desculpar pela escravatura não vem do sentimento (improvável) de uma responsabilidade retroativa nem da vontade (duvidosa) de desejar as boas-vindas aos africanos. As desculpas se parecem mais com os desagravos preventivos e hipócritas que são pronunciados quando a gente está à beira de fazer uma besteira: "Desculpe, mas vou ter de lhe dar um soco na cara". Explico.

As diferenças que a Europa deveria integrar hoje não são maiores do que as que povoaram as Américas, por exemplo, no começo do século passado. As Américas tentaram diluir as diferenças transformando todos em puros agentes econômicos: "Esqueça-se de suas origens e pense em fazer fortuna".

A Europa, zelosa de sua história e de suas identidades nacionais, pode dificilmente pedir a seus imigrantes que se esqueçam do passado deles. Com isso, na Europa, as diferenças não se perdem, se agudizam.

As desculpas de hoje, justamente, parecem assinalar uma intolerância crescente. "Desculpe-me por tê-lo escravizado no passado" é um jeito de lembrar que o passado continua valendo, e, nesse passado, você foi escravo, eu não. Ou seja, não somos bem humanos da mesma forma.

Em 1973, um psicanalista francês, Jacques Lacan, previa a subida do racismo. Na época, antes das recentes ondas de imigração do Terceiro Mundo para a Europa, suas palavras pareciam estranhas: afinal, não estávamos no meio do luminoso caminho da tolerância? Hoje, obviamente, elas parecem proféticas. E as pretensas desculpas pelo passado escravagista parecem ser mais uma inquietante confirmação do pressentimento de Lacan.

22 março 2007

"My Fair Lady"

O amor é prepotente: sempre acreditamos poder transformar e corrigir o objeto amado

NA SEMANA retrasada, estreou a nova versão brasileira de "My Fair Lady", no Teatro Alfa, em São Paulo. Jorge Takla, realizador e diretor, produziu um espetáculo encantador. A nova tradução, de Cláudio Botelho, é ótima; Amanda Acosta, como Eliza Doolittle, é adorável. O elenco, os cenários, a coreografia, as vozes, tudo é impecável.

Ao longo de minha vida, assisti a três produções de "My Fair Lady", (duas americanas e uma italiana) e, duas vezes, ao filme musical homônimo, que ganhou oito Oscars, em 1962. Também assisti à peça de Bernard Shaw, "Pigmalião" (na qual o musical é baseado), e ao filme "Pigmalião", de 1938 (que é a versão cinematográfica da peça). Em suma, a história de "My Fair Lady" me é bastante familiar, mas, a cada vez, ela me "pega". Por que será?

Certo, a música de F. Loewe é maravilhosa (algumas melodias integram meu módico repertório de chuveiro). Mas não é só isso: "My Fair Lady" é um clássico, que encena fantasias que habitam a mente de todos nós.

A história é conhecida: o professor Higgins encontra uma pobre vendedora de flores, estigmatizada por suas maneiras, sua gramática e sua pronúncia. Ele aposta que a transformará em uma "lady" com um curso intensivo de poucos meses. O mesmo professor, celibatário rabugento, aproveitará o curso para aprender algo sobre sentimentos.

Como nota Jorge Takla no programa do espetáculo, "My Fair Lady" é uma "Cinderela" em que acontece uma troca extraordinária entre um homem e uma mulher, cada um transformando o outro.

Voltemos ao mito que inspirou Bernard Shaw. Pigmalião era um escultor que se apaixonou perdidamente pela figura feminina que ele mesmo tinha esculpido. Afrodite ouviu suas súplicas e deu vida à estátua. Não se sabe se Pigmalião ficou feliz com essa dádiva ou se, ao longo do tempo, ele lamentou a época em que sua amada não tinha vida própria. Detalhe inquietante: Pigmalião criou a estátua e se apaixonou por ela porque desgostava das mulheres reais, que lhe pareciam indecentes (animadas por desejos autônomos).

A psicologia clínica usa o termo "pigmalionismo" para designar 1) a conduta erótica, um pouco estranha, de quem se apaixona por estátuas e as deseja; 2) num sentido mais amplo, a paixão pedagógica e erótica do sujeito que sonha com um objeto de amor e desejo que ele mesmo moldaria.

A psicologia experimental, nas últimas décadas, confirmou e debateu o "efeito Pigmalião": quando os professores esperam um grande progresso de seus alunos, os alunos progridem duas vezes mais rápido. O desempenho do aluno é proporcional às expectativas do professor.
Aos 20 anos, leitor assíduo de Ronald Laing e devoto da antipsiquiatria italiana, eu devaneava que, um dia, encontraria uma jovem esquizofrênica e catatônica: pela mágica de meus cuidados, eu lhe devolveria a fala e a vida. No processo, eu me apaixonaria por ela, e ela por mim; viveríamos felizes para sempre. Portanto, confesso: já fui pigmalionista e já apostei na força curativa do "efeito Pigmalião".

Mas a história de Pigmalião não se aplica apenas em casos de extremismo pedagógico e terapêutico. Qualquer um de nós desejou e deseja transformar o objeto amado. O amor é prepotente: idealizamos o outro e acreditamos firme que ele ou ela se emendarão. Somos convencidos de que o outro amado carrega todas as qualidades que nossa paixão lhe atribui: elas estão escondidas, atrás de uma "deformação" que será corrigida pela virtude de nosso amor.

Com isso, o amor desafia diferenças extremas, étnicas, culturais, religiosas e sociais. Um amigo carioca, aliás, me disse uma vez, brincando, que, se não tivéssemos uma fé desmedida no poder transformador do amor, se fôssemos "sensatos", homem só casaria com homem, e mulher com mulher.

Resta que, quando escolhemos nossa parceira ou nosso parceiro apesar de diferenças que nos incomodam e confiantes nas mudanças que virão, as chances de durar são pequenas. E grandes são as chances de que a vida em comum vire, rapidamente, um inferno. Mas é uma constatação que não inspira ninguém: o amor pensa o contrário, e esse é o mito de "My Fair Lady".

A peça de Bernard Shaw termina "mal" (Eliza não casa com o professor Higgins). "My Fair Lady", aparentemente, termina bem. Mas considere a última cena e, honestamente, pergunte-se: "Como essa história vai acabar?"

15 março 2007

Fama e narcisismo

Em uma "sociedade narcisista", a invisibilidade é mais intolerável que a prisão

NA CONVERSA leiga, "Fulano é narcisista" significa que ele adora se ver no espelho e nunca pensa nos outros.

Na clínica, o sentido da expressão é diferente: o traço dominante da "personalidade narcisista" é a insegurança. Narcisista é quem está sempre se questionando: "O que os outros enxergam em mim? Será que gostam do que vêem?".

Em ambos os casos, o narcisista se preocupa com sua imagem. Mas, na conversa leiga, ele seria apaixonado por ela (como o Narciso do mito), enquanto, segundo a clínica, ele seria dramaticamente atormentado pelo sentimento de que sua imagem depende do olhar dos outros.
De fato, a clínica tem razão: no espelho, enxergamos sempre e apenas o que os outros vêem (ou o que imaginamos que eles vejam). O mesmo mal-entendido aparece quando a gente constata que vive numa "sociedade narcisista".

Na conversa leiga, essa constatação soa como uma queixa moral: estaríamos vivendo no mundo do "cada um por si". A clínica sugere o contrário: numa sociedade narcisista, cada um depende excessivamente dos outros. Somos desprovidos de essência: sou filho SE meus pais me amam, sou pai SE meus filhos gostam de mim, sou psicanalista SE pacientes e colegas me reconhecem, sou colunista SE você agüentou ler até aqui. O espelho que nos define não é o de Narciso, é o da bruxa de Branca de Neve, um espelho que interrogamos, ansiosos.

Ora, recentemente, assisti, fascinado, ao processo de seleção da sexta temporada do programa "American Idol" (no canal Sony). É um programa parecido com "Fama", da Globo de dois ou três anos atrás, e com "Ídolos", do SBT. Trata-se de descobrir novos cantores e cantoras.

O vencedor é eleito pelo público da TV, mas o que me cativou foi a longa fase inicial, em que os finalistas são selecionados por um júri, entre milhares de jovens concorrentes.

Todos os candidatos parecem entusiasticamente certos de que serão o futuro ídolo, mas a audição da grandíssima maioria é propriamente constrangedora.

No mesmo canal, há outro programa parecido: "American Inventor", em que desfilam inventores convencidos de que seu achado mudará o mundo, mesmo que se trate da máquina acariciadora de cachorro para dono preguiçoso (uma das invenções propostas).

O que leva milhares de sujeitos a encarar uma espécie de humilhação pública? Será que eles são narcisistas à moda da conversa leiga, enamorados de si mesmos a ponto de perder toda autocrítica? Por algum milagre do amor materno, eles guardariam uma imagem de si positiva e imperturbável: "Deixe o mundo falar, pois eu fui, sou e sempre serei o ídolo da minha mãe" (alguns concorrentes, aliás, compareciam acompanhados por uma mãe embevecida).

É possível. Mas, nas palavras de muitos candidatos entrevistados, aparecia outra coisa: uma vontade dolorosa de despertar um olhar de reconhecimento não só no público, mas nos seus familiares, ausentes e indiferentes. Era como se eles estivessem dispostos a qualquer coisa para deixar, enfim, de ser invisíveis: "Riam de mim, mas ao menos me vejam". Pode parecer paradoxal que alguém tente chamar a atenção (do pai, da mãe, da irmã e do mundo) expondo-se ao ridículo e ao fracasso.

Mas, aparentemente, acontece que escárnio e zombaria são um preço aceitável por um (triste) momento de fama.

Uma analogia talvez nos ajude a entender. As estatísticas dizem que há mais jovens que adultos delinqüentes. Justificação tradicional (além da "testosterona" da adolescência): os jovens andam em grupo.

Portanto, é freqüente, no caso deles, que haja mais de um réu por crime.

Certo. Mas também tudo indica que os jovens delinqüentes são presos mais facilmente que os adultos. Não é imperícia: parece que, de uma certa forma, eles se deixam prender, como se seu gesto transgressor tivesse como finalidade última o encontro com a polícia e o juiz. Por quê?
Para a dramática insegurança do narcisismo (aqui no sentido clínico), uma condenação ou um fracasso humilhante apresentam uma vantagem parecida: ambos são preferíveis ao silêncio do outro. Num mundo em que a gente só existe pelo olhar alheio, a invisibilidade é mais intolerável do que o escárnio ou a prisão.

PS.: Na semana retrasada, comentei o filme "Pecados Íntimos". Li, nestes dias, o livro no qual ele se inspira, "Criancinhas", de Tom Perrotta (Objetiva): é tão tocante e forte quanto o filme, se não mais.

08 março 2007

Mistérios de dentro ou de fora

Desde quando o interior de nosso corpo revelaria os mistérios de nossa própria existência?

NA SEMANA passada, duas exposições estrearam na Oca do Parque do Ibirapuera, em São Paulo: "Corpo Humano" e "Leonardo da Vinci". O ideal seria visitá-las no mesmo dia (apesar das filas e do preço).

"Corpo Humano" apresenta 16 corpos esfolados e dissecados (e 225 órgãos internos). A exposição suscitou, pelo mundo afora, um enorme interesse de público e algumas críticas. Por exemplo, foi levantada a suspeita de que os corpos sejam cadáveres de indivíduos executados pela Justiça chinesa.

Seja como for, Roy Glover (o promotor desse circo anatômico ambulante) propõe um extraordinário espetáculo científico-educativo: enfim, podemos ver como somos por dentro. Diz a sinopse: "É uma oportunidade única para o público em geral explorar os mistérios de sua própria existência".

Pergunta: desde quando acreditamos que ver de perto o interior de nosso corpo seja um jeito de conhecer os mistérios de nossa existência? Não faz muito tempo.

Foi em algum momento do século 17 que nossa curiosidade científica e existencial começou a procurar respostas sobretudo no que está dentro das coisas e no invisível, no infinitamente pequeno (que podemos magnificar) ou no longínquo (que podemos aproximar e tornar visível). É nessa época que inventamos telescópio e microscópio. Desde então, descobrimos células, bactérias, vírus, circulação do sangue etc., assim como moléculas, átomos, cometas, satélites, buracos negros e por aí vai.

O cientista (que, geralmente, tem pouca consideração pela história da ciência) dirá que a ciência se engajou na direção do dentro e do perto, tornando visível o invisível, porque é assim que ela conseguiu entender melhor o mundo e transformá-lo no interesse de todos.
Mas, na verdade, a escolha pelo dentro e pelo perto não se deu na procura da eficácia técnica (que, aliás, no começo, era imprevisível).

Nossa cultura foi procurar a solução dos mistérios no que está escondido dentro dos indivíduos e dos objetos porque o conjunto do mundo visível tinha perdido seu sentido. A ciência se enveredou por um caminho forçado, imposto por um luto: éramos órfãos do sentimento de uma harmonia do Cosmo.

Se tivéssemos podido escolher o grande angular em vez do telescópio e do microscópio, se tivéssemos podido olhar para o conjunto e não sobretudo ou apenas para os elementos, teríamos produzido outra ciência (menos eficiente? Não há como saber). Agora é tarde: se, na noite de sábado passado, seu filho ficou doente, você, em princípio, preferiu pedir um exame de sangue a interrogar os efeitos do eclipse da Lua. Hoje, podemos "brincar" de astrólogos, mas nossa confiança num Universo harmônico, em que tudo estaria interligado, é abalada, duvidosa.
Os cadáveres de Roy Glover revelam alguns mistérios da existência nos mostrando o que é normalmente invisível, o interior do corpo. Mas há outros mistérios, perdidos: quem foram eles? Quem os amou, quem eles amaram, quem foram seus pais, qual conjuntura da família, do vilarejo, do mundo e dos astros acompanhou sua vida?

É o custo de nosso caminho forçado: nossa ciência gagueja quando se trata de entender o conjunto. Mapeamos o DNA e logo conheceremos cada proteína no sangue; em comparação, o que conseguimos entender das relações humanas e de nosso lugar no mundo é risível: conjeturas, interpretações nas quais a ciência compete com a fantasia.

Houve um momento de transição, mágico e esplendoroso, em que pareceu possível conciliar os inconciliáveis, ou seja, olhar para dentro, para o invisível, sem deixar de apostar numa suprema harmonia do mundo visível. Nesse momento, que é a Renascença, foi possível dissecar cadáveres e começar a construir ciência e técnicas eficientes sem abandonar a idéia de um Universo ordenado.

Na exposição de Leonardo, há desenhos anatômicos (resultado de dissecação) e há máquinas sofisticadas, mas, no centro, está o Homem Vitruviano com seu corpo perfeitamente inscrito num círculo. Leonardo podia explorar nossas entranhas sem deixar de acreditar na relação do corpo com o universo: a anatomia humana era, para ele, um microcosmo que refletia o macrocosmo.

Como seria o mundo de hoje se, por exemplo, medíssemos as distâncias não pelo metro (estabelecido arbitrariamente no século 18), mas pelo tamanho médio da envergadura de nossos braços?

01 março 2007

"Pecados Íntimos"


O filme, tocante e verdadeiro, é sobre como nosso desejo encalha e se solta

"PECADOS ÍNTIMOS", de Todd Field, estreou no dia 9 de fevereiro. Parecia ser mais um filme sobre a vida nos subúrbios americanos de classe média, tipo "Beleza Americana" (vencedor do Oscar em 2000), e fiquei com preguiça. Sempre acho um pouco fácil satirizar uma maneira de viver, como se o jeito da gente fosse o certo: "Aponto o vazio na vida dos outros para me convencer de que a minha é autêntica e plena".

Vários leitores me escreveram estranhando que não comentasse o filme. Graças a eles, assisti, enfim, a "Pecados Íntimos", que NÃO é um filme sobre a vida nos subúrbios americanos (a não ser que você considere que "Hamlet" é uma peça sobre a vida na corte da Dinamarca durante a Idade Média).

"Pecados Íntimos" é um filme tocante e verdadeiro sobre os caminhos forçados de nosso desejo e sobre como ele encalha (quase sempre) e se solta (aos trancos).
Quando ensinava "Cultural Studies" na New School, começava dizendo a meus estudantes que eles eram livres para tirar todas as notas

A que quisessem, mas, para entender a subjetividade moderna, eles teriam que passar por três letras B: Brummel, Byron e Bovary. Não era só uma piada de professor: as três figuras em questão, afinal, falam todas de nossa impossibilidade de conseguir, na vida, a nota máxima.
Um B já é de bom tamanho. Brummel (o primeiro dandy, no fim do século 18) lembra que a nobreza não é efeito do berço em que a gente nasce; ela é fruto da "elegância" (não tanto das maneiras e da roupa, mas do espírito). O hábito, na modernidade, faz o monge, e somos livres para escolhê-lo. Mas essa liberdade tem um custo: o desconforto de apenas parecer o que somos e, claro, a aflição de parecer o que não somos ou não queremos ser. O hábito faz e aprisiona o monge.
Byron (o poeta romântico) lembra que, na vida moderna, o que importa é a intensidade e a variedade de experiências. A fome de viver e o anseio de aventuras levam alguns a lutar pela independência da Grécia, a pular de skate quando mal sabem andar ou a perder-se nas sarjetas do mundo. E nos levam a sonhar com o que não ousamos empreender.

Emma Bovary (a heroína do romance de Flaubert) lembra que o amor é o grande operador moderno da mudança. Descobrimos que podíamos inventar nossa vida quando começamos a casar por amor (e não para preservar a casta, a família e o patrimônio). Portanto, esperamos do amor que ele nos transforme e nos leve para uma "outra" vida (e toda vida tem uma "outra" vida com a qual sonhar).
Numa cena de "Pecados Íntimos", "Madame Bovary" é comentado por um grupo de mulheres. Elas descobrem (a contragosto) que são todas, de um jeito ou de outro, Emma Bovary: inconformadas com sua vida e desejosas de um amor que as salve.

Mas "Pecados Íntimos" é mais que uma adaptação de "Madame Bovary": é um pequeno "tratado" da subjetividade moderna. Até porque, justamente, Emma Bovary sentia que ela era muito mais do que parecia pela "rotina" de sua vida. E seus sonhos de amor eram sonhos de experiência e aventura. Ou seja, os três "B" estão sempre juntos, dentro da gente.

Além disso, é difícil sair do cinema sem se perguntar por qual mistério somos condescendentes com nossas impulsões (o pedófilo e a protagonista não são os únicos que não sabem resistir às tentações) e, ao mesmo tempo, inertes quando se trata de mudar de vida. O desejo só consegue se expressar por sobressaltos. É como se, contra o nosso desejo, tivéssemos erigido um dique inútil: a água irrompe, forte, pelas pequenas falhas, mas sua massa não se transforma em energia para inventar a vida.

A incapacidade de mudar, aliás, é o grande tema do filme. Há a mãe do pedófilo, que espera que o filho se torne "normal", mas, olhe só, coleciona estatuetas de meninos. Há a mulher que não quer perder o marido, mas enfia o filho no meio da cama e vigia a vida do esposo como uma mãe. Há a mulher que morre de tédio e transa com o marido toda terça às 19h30, embora sonhe em conseguir o telefone de um bonitão.

Há o homem que cansou de ser babá do filho, mas, quando se trata de estudar para o exame da Ordem, passa as noites à toa.

O título original do filme é "Little Children" (criancinhas). Em matéria de desejo, somos todos criancinhas, incapazes de encontrar a coragem de fazer o que desejamos, mas sempre (e apenas) tentados por potes de geléia.