13 setembro 2001

Dificuldade em enxergar os inimigos

Premonição: esta coluna foi terminada segunda-feira, 10, antes do ataque terrorista contra o povo dos Estados Unidos.
Na semana passada, aconteceu, em Durban (África do Sul), a Conferência das Nações Unidas contra o Racismo.

Parece-nos natural que todos os homens desejem um mundo respeitoso das diferenças de cada um, mesmo que nem sempre eles consigam conter suas próprias raivas racistas. Pois bem, enganamo-nos. A conferência lembrou que somos (infelizmente, nesse caso) menos globalizados do que parecemos: o sonho de um mundo sem discriminação é apenas uma característica de nossa cultura e da modernidade ocidental.

O encontro de Durban foi travado por dois assuntos.

Um deles foi a questão da escravatura e de como lidar com sua herança (indenizações, políticas compensatórias dos danos passados etc). Voltarei ao tema numa próxima coluna.

Mas o assunto que desvirtuou a conferência foi o conflito entre Israel e o povo palestino. Inesperadamente (porque a reunião não tinha a ambição nem os meios de propor mediações para o conflito), alguns representantes de países islâmicos acharam bom pedir que a política de Israel e o sionismo em geral fossem qualificados pela conferência como racistas.

Para entender o efeito produzido por esse pedido, imaginemos que haja uma reunião de todos os condôminos e inquilinos de um prédio para chegar a declarações comuns, graças às quais a convivência de todos se torne mais digna. Agora imaginemos que se constitua um Grupo do Terceiro Andar (o que já é um problema, por introduzir na reunião um interesse particular) e que esse grupo peça que certos inquilinos sejam definidos como imorais ou barulhentos e, portanto, que sejam expulsos. É claro que os moradores do terceiro andar não entenderam o espírito da reunião. Ou então (mais provável), eles não compartilham o projeto de constituir um condomínio de valores comuns. Só aproveitam a reunião para liquidar o pessoal que os incomoda.

O Grupo do Terceiro Andar é como a Organização dos Países Islâmicos: sua denominação já contradiz o espírito de uma conferência contra o racismo. Em geral, os grupos reunidos por um sistema fechado de crenças promovem a discriminação dos infiéis. É aceitável tratando-se de igrejas. Mas, tratando-se de nações ou supranações, esse funcionamento entra em conflito com nossos valores básicos, a começar pelas liberdades individuais. Aliás, o Brasil não pertence a uma Organização dos Países Cristãos. Também a Bahia ou o Caribe, não participam de uma Organização dos Países Umbandistas.

Em suma, há uma oposição de fundo entre a modernidade ocidental (que é nossa sensibilidade) e as nações que são comunidades tradicionais organizadas ao redor de uma confissão. Trata-se de uma fratura cultural, e seria ingênuo tratá-la como uma simples divergência política.

Uma comunidade tradicional não tem por que sonhar com o convívio harmonioso de indivíduos, de nações e de culturas diferentes. Para ela, os limites do humano coincidem com seus próprios limites. Escravizar, segregar, discriminar o infiel, o diferente ou o cara da tribo é uma atividade normal, se não meritória.

Nós, ao contrário, estabelecemos, entre os princípios formais de nossa cultura, a igualdade de todos, por diferentes que sejam, perante leis comuns. Logo, somos frustrados por nossa incapacidade de realizar os princípios nos quais acreditamos. Ou seja, acontece que discriminamos uma outra etnia, fé ou opinião, mas essa atitude (norma de uma cultura tradicional) é, para nós, uma preocupação ou mesmo um tormento, porque constitui uma distância inaceitável entre nossos princípios e nossos restos tribais -regurgitações de desprezo pelos outros e de sentimentos de nossa superioridade.

A conferência de Durban contra o racismo foi convocada para aprimorar os princípios formais de nossas democracias e para realizá-los concretamente.

O problema é que estamos tão preocupados em derrotar o racismo e a intolerância em nós mesmos que mal conseguimos enxergar e admitir a existência de culturas propriamente opostas à nossa. Reconhecê-las como tais nos parece ser uma forma do racismo que queremos evitar.

Exemplo: muitos comentadores levantaram a hipótese de que os EUA e outros países ocidentais teriam aproveitado a polêmica ao redor do sionismo para invalidar a conferência e assim evitar dolorosas conclusões sobre as eventuais indenizações aos países africanos que foram saqueados pelo comércio escravagista. A hipótese inversa é bem mais verossímil: os países islâmicos produziram essa polêmica para esvaziar de sentido, por exemplo, a proclamação da igualdade de direitos entre homens e mulheres ou a denúncia da discriminação das orientações sexuais, digamos, minoritárias. Agitando seu dedo em riste, os emissários do Irã evitaram discutir o destino reservado, em seu país, aos homossexuais. Os emissários do Taleban evitaram falar do destino das mulheres afegãs.

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