27 janeiro 2000

Se não posso cometer excessos, por que viver?

Leio as estatísticas recentes da epidemia da Aids nos EUA. Aparece uma desproporção: 52% dos homens que se contaminam por práticas homoeróticas são hoje negros ou latinos.

Aparentemente os programas de prevenção não funcionaram com os membros dessas minorias. Segundo os comentários, a culpa estaria nas diferenças culturais: negros e latinos bissexuais se consideram heterossexuais e acham que essa história não é com eles. A explicação faz sentido, mas fico com a impressão de que negros e latinos se cuidam menos também por serem aqui minorias desfavorecidas.

Há outras realidades em sintonia com essa impressão. Por exemplo, o cigarro: entre os que não largam, os pobres são os mais numerosos. Aliás, as companhias de tabaco agradecem ao Terceiro Mundo, que é menos sensível às campanhas contra o fumo. A mesma coisa vale para os hábitos alimentares e outras práticas saudáveis ou, ainda, para o respeito às regras do trânsito etc. Parece existir uma proporção inversa entre cuidado com a vida e com a pobreza: não vale a pena se apegar à vida pobre. É uma lógica chata, com um pressuposto incômodo: a vida que merece ser vivida seria a de brancos classe A, com conta no banco e futuro garantido.

Os outros não têm por que se preservar. Por mais que esse argumento seja corriqueiro, há uma velha piada que diz o contrário, ou seja, que a vida sem excessos nunca vale a pena. Esse chiste acompanha há mais de um século os avanços dos ditados da boa saúde. Sua mola cômica é a seguinte: as condutas saudáveis podem prolongar a vida, mas a gente não sabe mais direito se a vida, uma vez limitada ou organizada por essas condutas, ainda vale a pena.

Ou seja, se não posso cometer nenhum excesso, por que viver tanto? Nos anos 50, quando Baco, tabaco e Vênus eram estigmatizados como inimigos da saúde, ríamos de uma cumplicidade implícita na transgressão: podem falar, mas não vamos parar por isso. Ultimamente, essas piadas perderam a graça porque não há mais cumplicidade implícita que nos faça rir. Aceitamos a prescrição: você precisa mesmo parar com os excessos. Parece que o ideal de vida não é mais uma aventurosa queima de forças e paixões, mas uma espécie de repetida vacina contra a morte.

Os excessos, que consomem a linfa, ficam com os pobres que podem se dar a esse luxo por não ter nada a perder. É a versão contemporânea da história hegeliana do mestre e do escravo. Para Hegel, o mestre clássico era aquele corajoso cavalheiro que desafiava a morte, pois não fazia de sua sobrevida um valor essencial. O escravo era, ao contrário, aquele que preferia sobreviver. O mestre procurava ocasiões para mostrar a sua valentia. O escravo trabalhava. O mestre defendia o escravo com sua espada, mas lhe devia a sua subsistência. Hegel antevia que, com isso, o mestre perderia a capacidade de plantar, fabricar, produzir etc.

Um belo dia, ele estaria tão alienado do mundo que o escravo acabaria tomando posse. As coisas não foram por esse lado. O escravo não se apoderou da produção. Mas talvez a previsão de Hegel não estivesse de todo errada, pois está acontecendo outra coisa parecida. O mestre achou graça nos privilégios de seu status e parou de desafiar a morte. Aliás, ele não quer nem ouvir falar em morrer.

Ao contrário, passa seu dia se preocupando com o que se preservar. Sua definição da vida é a prevenção do risco e da doença. Emaciado devido aos regimes, abstratamente exercitado por bicicletas e esteiras que não vão a lugar nenhum, adverso à promiscuidade, incerto entre preservativo, masturbação e abstinência, ele é uma figura triste: um parcimonioso de si mesmo.

De tanto se preocupar em sobreviver, talvez ele esteja perdendo a capacidade de gozar. O escravo poderia ficar com o prazer de viver, pois, por ter pouco ou nada a perder, talvez ele se aventurasse a gozar a vida como um bem que poderia ser gasto. As coisas ainda não chegam a tanto, até porque é difícil o escravo gozar a vida sem comida no prato.

Mesmo assim, o mestre se antecipa e já inveja esse escravo que se permite perigosos e proibidos prazeres. Nos desfiles de Paris da semana passada, Dior apresentou uma coleção costurada de trapos e de imitação de jornais velhos, tentando vestir as modelos como sem-tetos nas ruas da cidade. Como conhecer o "frisson" da vida escrava sem perder a bússola? Simples: US$ 25 mil compram uma roupinha de sem-teto. Mais baratas, mas não de graça, são as calças da Calvin Klein, tratadas para parecer sujas.

Nada de novo. Afinal, pobre se mata nos guetos, e rico tenta imitá-lo com paintball e video game. Pobre se perde na cracolândia, e rico cheira uma coca social no sábado à noite. Sugestão para alguma agência de turismo: por que não propor um fim-de-semana em barraco de favela autêntico, com tiroteio garantido? P.S.: Para evitar um mal-entendido: parei de fumar, não como gordura e desaconselho promiscuidade sem camisinha. Mas me consterna a idéia de que se manter em vida esteja se tornando a principal razão de viver.

23 janeiro 2000

Acusação sem endereço

Acusação sem endereço


No caderno Mais! do último 9 de janeiro, João Cezar de Castro Rocha propõe algumas críticas ao meu ensaio "Do Homem Cordial ao Homem Vulgar", publicado neste mesmo caderno em 12 de dezembro de 99. Na verdade, concordo com quase todas as suas críticas, só não entendo a quem elas se endereçam. Fico olhando por cima de meu ombro para ver se há alguém atrás de mim com quem meu crítico estaria falando, pois não me reconheço no que ele parece ler em meu texto. Faço parte de uma geração que, no catálogo das boas maneiras, aprendeu a descartar o acusatório "você não entendeu" e preferir o mais humilde "não me expressei direito". Então é isso: devo ter-me expressado mal e aproveito agora para melhorar.

Herança genética
Segundo meu crítico, eu compreenderia "a cordialidade como índice de um hipotético caráter brasileiro". É engraçado: nunca desisti de mandar brasa contra a caracterologia nacional e agora acabo convencendo João Rocha de que é nisso mesmo que acredito. Eta imperfeição da linguagem humana! Dito com clareza: não acredito, nunca acreditei, nem acredito que acreditarei um dia na existência de um caráter nacional brasileiro que desceria do céu como uma herança genética ou mesmo histórica. Nenhuma brasilidade garante uma continuidade cordial atrás dos percalços da história brasileira. A cordialidade não é um traço inato da personalidade brasileira (a qual, por sua vez, não é uma entidade nem física nem metafísica). Ser cordial é um hábito (no sentido aristotélico) que resulta de um tipo dominante de relações sociais. Portanto a sociedade brasileira não é o efeito de nossa congênita cordialidade. Ao contrário, podemos nos servir da cordialidade para descrever de maneira colorida e sensível as formas de vida que resultam de uma organização social em que (resumindo) a ordem privada se impõe à ordem pública. Não sei por que Rocha também considera que a cordialidade seria para mim só brasileira ou que eu compreenderia Sergio Buarque "exclusivamente como uma interpretação da formação social brasileira", negligenciando a relevância teórica de suas análises. Sigo olhando por cima de meu ombro esquerdo e direito: ninguém, então é comigo mesmo. Mas não vejo de onde essa impressão chega até meu crítico. Talvez seja porque tenho a reputação de nunca ter viajado fora do Brasil. Bom, trégua de ironia: o hábito da cordialidade resulta de uma configuração social que é banal.

Máfia e mortadela
No quadro limitado e ("hélas!", relativamente) breve de minha vida já me deparei com algo análogo: foi na Itália, no pós-guerra. A mesma herança de um mundo rural que o fascismo não mudou. A mesma constituição dos traços "cordiais" em uma espécie de fetiche (o termo de Teresa Sales é insubstituível) nacional. Em vez de carnaval, samba e futebol, na Itália foi mandolina, pizza, mortadela, máfia, "mare chiaro" e "sole mio". Curiosamente, quando o milagre dos anos 50 e 60 impôs uma modernização política e produtiva, as elites também evoluíram para a vulgaridade (que tampouco é uma prerrogativa do espírito brasileiro). O ensaio trata do Brasil de hoje e descreve uma transição social que poderia ser apresentada em termos suficientemente abstratos para fazer feliz qualquer weberiano. Melhor ainda, ela poderia facilmente ser encontrada em outros momentos e lugares. No Brasil de hoje, como na Itália do milagre, a vulgaridade acontece quando uma modalidade moderna da divisão social e do exercício do poder é adotada pelas elites sem que o tecido social se altere em consequência. Mais especificamente, a vulgaridade acontece quando a ostentação -peça-chave da organização social moderna- é acatada sem seu corolário de mobilidade social. A ostentação perde assim sua função de alimentar a inveja generalizada como motor da competição e, portanto, do desenvolvimento. Ela se torna a caricatura ou o travesti de uma forma arcaica de opressão. Não é difícil entrever que essa conjuntura é tão banal quanto o fato de que as elites da periferia do neoliberalismo se globalizam facilmente sem renunciar às formas (eventualmente arcaicas) de domínio que garantem seus privilégios.

Brutalidade abstrata
Enfim, entre João Rocha e eu há pelo menos um ponto de discordância, sem mal-entendido. Meu crítico se surpreende que, na conclusão do ensaio, eu aposte numa cordialidade brasileira anterior à vulgaridade. Nessa esperança, ele vê mais uma complacência em relação à brasilidade que não existe.

Ora, sem fascínio pelo fetiche do caráter nacional e sem saudosismo, parece-me possível desejar que resíduos da formação social nacional permaneçam como hábito de comportamento e, quem sabe, aliviem a brutalidade abstrata que a modernização globalizada promete a todos.
É possível que, como escreve Carlos Drummond, citado por meu crítico, "os brasileiros" não existam. Razão a mais para tentar inventá-los direito. Como nenhuma invenção se faz a partir de zero, se der para escolher, gostaria delevar para o futuro um pouco da "cordialidade generosa" do povo que eu evocava -confesso, sim, com ternura e simpatia- no fim de meu ensaio.

20 janeiro 2000

De onde vem o despertar de uma besteira

Surpreendi o primeiro vagido de uma besteira. Senti-me como um astrônomo que, por puro acaso, apontando seu telescópio para o céu, veria um corpo celeste surgir do nada.

Foi assim. Em janeiro, os "Archives of General Psychiatry" publicaram um artigo inexpressivo -uma daquelas pesquisas que servem para levantar fundos e preencher as exigências de publicação do mundo acadêmico americano. Durante quatro anos, os autores testaram o nível de cortisol na saliva de 38 rapazes patologicamente agressivos. O cortisol é um hormônio produzido pelo organismo em situações de estresse e medo.

Constatou-se que, entre esses jovens com problemas de conduta, os mais violentos eram os com menos cortisol no organismo. Explicação: os que menos se angustiam são os mais violentos, porque não são inibidos pelo medo das consequências de seus atos.

Os autores comentam: "O mecanismo que liga uma agressividade persistente a baixas concentrações de cortisol não é conhecido. Modelos animais mostraram que estresse no pré-natal e no desenvolvimento precoce podem causar alterações duradouras ou mesmo permanentes do eixo hipotalâmico-pituitário-adrenalínico (que é responsável pelo cortisol -nota minha). Seria interessante em estudos futuros examinar se um certo estilo de vida próprio a famílias anti-sociais (tabagismo materno ou exposição a outros teratogênicos durante a gravidez, incompetência dos pais, ambiente caótico e imprevisível, abuso, ameaças, privações) pode ser associado a desregramento desse eixo".

Em outras palavras, a pesquisa constata a correlação entre uma situação fisiológica (baixo nível de cortisol) e o comportamento patológico agressivo. Mas a causa da patologia reside nas dificuldades da vida desses jovens. A partir dessa conclusão seria possível sair propondo um chiclete de cortisol, com a idéia de que ele possa acalmar nossos adolescentes. Mas os autores nunca diriam que esse remédio cura a agressividade dos adolescentes. Seria apenas um paliativo.

Ora, acontece que os problemas de comportamento dos jovens são um best seller cultural e terapêutico. Pais desesperados pagariam qualquer preço para a cura da agressividade adolescente. Qualquer novidade nesse campo, por inexpressiva que seja, é notícia.
Eric Fidler, um jornalista da Associated Press, achou que a pesquisa poderia dar samba e escreveu um breve artigo no qual a pesquisa dos "Archives" passa por uma séria cirurgia plástica.

O artigo começa assim: "Na saliva de jovens muito agressivos foram encontrados níveis menores do que o esperado de um hormônio do estresse. O que sugere que seu comportamento pode ser biologicamente fundado e difícil de ser tratado com terapia. É o que foi anunciado ontem por pesquisadores". O que aconteceu? O jornalista entrevistou um dos autores, Keith McBurnett, e conseguiu que ele sugerisse que um tratamento apropriado poderia incluir remédios similares àqueles administrados às crianças hiperativas.

Fidler, em suma, preferiu esquecer a pesquisa e levou McBurnett a afirmar o que ele (Fidler) estava a fim de ouvir -ou seja, que vamos poder tratar adolescente violento com pílulas.
Será que para conseguir uma notícia que prestasse Fidler empurrou McBurnett a falar besteiras em desacordo com sua própria pesquisa? Será que McBurnett se deixou empolgar por seus 15 minutos de celebridade? Provavelmente as duas coisas ao mesmo tempo.

Moral da história: uma pesquisa inexpressiva sobre uma simples correlação fisiológica (sem implicações causais) encontrou a ambição de um jornalista, que encontrou a vaidade de um psicólogo. Graças a isso, ela se transformou numa afirmação sobre a causalidade de um dos comportamentos mais problemáticos em nossa cultura.

Previsão: a seguir, equipes médico-psicológicas improvisarão programas experimentais de tratamento bioquímico para adolescentes agressivos. Logo um laboratório farmacêutico produzirá um suplemento de cortisol que dará ótimos resultados nos testes: vamos dizer, 50% de curas. Tempos depois, alguém verificará que de fato qualquer placebo inerte daria o mesmo resultado.

No entanto, o laboratório ganhará à beça. As equipes hospitalares serão louvadas por sua cientificidade e, naturalmente, durante vários anos, uma série de rapazes violentos ficarão sem ninguém que preste atenção à mensagem desesperada contida em seus atos.

P.S.: Na última segunda-feira, dia 17, outro jornalista da Associated Press soltou um artigo sobre uma doença que torna inválidos 10 milhões de americanos. É a "desordem da angústia social", melhor conhecida como timidez. É um artigo estranho, com algumas entrevistas com pessoas tímidas e nenhuma referência a pesquisas recentes. Pergunto-me: qual é a necessidade desse artigo? Por que agora? Onde está a notícia? Aí, ligo a TV: repetidamente aparecem os anúncios da campanha publicitária do Paxil, remédio proposto para curar a dita "desordem da angústia social". Que coincidência, não é?

13 janeiro 2000

No ano novo, prometo parecer sincero e autêntico

Eu ficaria satisfeito se recebesse um dólar por cada criança americana que abriu sua lista de intenções para o ano novo com a promessa de nunca (mais) mentir.

Mentir, nos EUA, é o pecado fundamental. Melhor encarar as consequências de uma verdade incômoda do que falar falsidades. O presidente Clinton que o diga: os americanos preferem lhe perdoar as escapadelas com Mônica Lewinski a suas tentativas de ocultá-las.

De um ponto de vista europeu e latino-americano, as mentiras de um "gentleman", por exemplo, devem ser consideradas com condescendência, pois a honra de uma dama passa antes das exigências de sinceridade de seu cavalheiro. Desse mesmo ponto de vista, há mil fidelidades que poderiam anteceder o compromisso com a verdade. Mentir visando o bem não é nenhum paradoxo para nós.

Outro exemplo: a significação das cartas de recomendação. No Brasil ou na Europa, elas manifestam sobretudo o apoio de quem recomenda: "Por respeito a mim, trate bem o portador da presente". Nos EUA, a carta de recomendação é escondida do recomendado para que nada impeça quem recomenda de falar verdades desagradáveis. Ou seja, pediu recomendação: leva a verdade. A carta vale portanto como atestado verídico, não como manifestação de apoio. Aliás, é mais fácil pedir dinheiro emprestado a um amigo americano do que lhe pedir para mentir.

Em contraponto, a sinceridade se torna a virtude americana originária. George Washington, herói fundador, poderia ser celebrado por uma série de razões: coragem, persistência, honestidade etc. Na lenda, fica como o homem que nunca disse uma mentira, nem quando criança. É engraçado, pois nos terríveis invernos da guerra de independência, se Washington não tivesse mentido a seus homens sobre salários, perspectivas da campanha ou mesmo previsões do tempo, provavelmente não sobraria ninguém para discutir com os ingleses.
Resumindo, nos EUA, mentir é um pecado a priori e a sinceridade é uma virtude abstrata.

Há uma explicação clássica para isso: numa sociedade individualista realizada e composta por agentes sociais iguais em princípio e direito- a mentira produziria uma confusão social intolerável. Se as pessoas não se definem por nascença, sangue etc., sinceridade e autenticidade se tornam valores cruciais, pois sem eles nunca saberíamos direito com quem estamos lidando. Quanto mais uma sociedade for moderna, tanto mais a sinceridade e a autenticidade serão suas obrigações morais.

É isso que, anos atrás, me lembro de ter entendido, lendo "Sinceridade e Autenticidade", de Lionel Trilling, o grande crítico americano. Ser sincero e autêntico é uma obrigação cultural moderna justamente porque nossa história pessoal nos define mais do que nossa estirpe ou nossas heranças. Nós nos inventamos e os outros nos conhecem porque lhes apresentamos essa nossa invenção, portanto, torna-se crucial não mentir. Isso vale da conversa fiada até o amor, passando pelo mercado do trabalho: se consigo meu emprego pelo que eu fiz e sei fazer e não por ser amigo do marquês, não posso mentir, devo ser eu mesmo.

Mas aqui surgem alguns pepinos. Pois o que é ser "eu mesmo", ser autêntico, se por nascença e natureza não somos mais nada? E o que é se apresentar sinceramente aos outros senão levá-los a acreditar na imagem que inventamos para nós?

Nessa altura, é útil parar duas horas. O tempo de assistir ao "Talentoso Sr. Ripley", a nova adaptação do romance de Patricia Highsmith por Anthony Minghella (diretor de "O Paciente Inglês"). Ripley (o extraordinário Matt Damon) é o herói que prefere ser um falso alguém do que um verdadeiro ninguém. Nessa empreitada, ele não recua perante nada. Ora, sem entrar em detalhes, o filme é imperdível sobretudo pela experiência que proporciona: ele acua o espectador na inconfortável posição de torcer angustiadamente por Ripley, o impostor, embora ele nos indigne moralmente.

Acontece que Ripley é inevitavelmente dos nossos. Sua aventura lembra que, por mais que prezemos autenticidade e sinceridade, ser alguém em nosso mundo é sempre um jogo de aparências e por isso mesmo de imposturas. É o paradoxo moderno: devemos e queremos ser autênticos e sinceros e, ao mesmo tempo, nosso ser social se resume em fazer os outros acreditarem em nossa aparência.

Em suma, dispúnhamos de uma explicação sociológica pela qual a sinceridade é um valor indispensável ao funcionamento da sociedade moderna. Talvez uma outra interpretação seja mais bem-vinda, embora mais complexa: sinceridade e autenticidade se tornam valores cruciais justamente porque, na modernidade, a impostura é erigida em sistema social. É proibido mentir não porque nossa sociedade é construída na confiança, mas porque ela é organizada na mentira. E a maior mentira consiste em afirmar que queremos falar a verdade. Em outras palavras, somos mentirosos demais para não venerar a sinceridade.

De qualquer forma, para este ano novo, prometo parecer cada vez mais autêntico e sincero.

06 janeiro 2000

Os jovens reduzem a cinzas duas imagens

Em Brasília, abril de 1997, o índio Galdino dos Santos foi queimado vivo por cinco jovens da classe média. Quem não se lembra? Durante várias semanas o país se indignou a fundo e mergulhou em sua alma para descobrir alguma razão para esse horror.

A tentação era pensar em um mal especificamente brasileiro. Afinal, toleramos formas de miséria extrema e de degradação que são barbáries próximas ao extermínio. Também sofremos (assim como se sofre de uma doença) do caráter atavicamente ávido e predatório das elites. Portanto não seria estranho que essas e (eventualmente) seus rebentos desconsiderassem totalmente a vida de quem está fora da única corrida que vale (do ponto de vista dominante).

No último dia 30 de dezembro, o editorial da Folha lembrava que em 1999 mais sete moradores de rua (este eufemismo para sem-teto) foram queimados, cinco deles por companheiros de infortúnio. O que não é, mas parece, menos trágico. O barco moderno é assim: não podendo suprimir os pobres, mas querendo melhorar a vida de todos, suprime-se a terceira classe. Quem não pode pagar a segunda vai para os tubarões. Se os clandestinos se matam entre eles, tanto melhor. Enfim, no Brasil, os assassinos de mendigos, em sua maioria, não foram adolescentes ditos de boa família. Pequena variante do mesmo drama nacional?

Não parece. No dia 23 de dezembro, o "The New York Times" publicou um artigo que me deixou estupefato. O texto começava descrevendo uma série de assassinatos selvagens: cinco batidos até a morte e dois decapitados em Denver. Outro batido, esfaqueado e decapitado em Richmond, Virgínia, a cabeça neste caso foi levada até uma ponte para pedestres e aí exposta. Em Seattle, mais dois. Outros em Dallas, em Chico, Califórnia, em Portland, Oregon, e por aí vai. Era uma lista de sem-tetos barbaramente assassinados nos Estados Unidos em 1999.

Nessa contagem feita a partir dos relatos na imprensa foram 29 mortos em um ano. Mais seis que mal sobreviveram aos ataques. Esses números assustadores subestimam o fenômeno, pois trata-se apenas dos ataques mencionados pela imprensa (a polícia não conta de maneira diferenciada os crimes contra moradores de rua). Além disso, sem-tetos e mendigos raramente registram queixas.

Os autores desses crimes são na maioria menores de 21 anos, o mais jovem tendo apenas 14.
O artigo do "Times" considera que não foi uma safra especial. Também é constante que a maioria dos suspeitos e acusados desse tipo de violência sejam adolescentes ou pré-adolescentes.

Apesar de ser um leitor cuidadoso da grande imprensa americana, eu não fazia idéia de que a história do índio Galdino fosse um crime globalizado. Ao contrário, como muitos outros, pensava que era a expressão de uma iniquidade brasileira.

Ora, em 1999, nos EUA houve 29 Galdinos. Também nenhum deles produziu o tipo de indignação que surgiu no Brasil em 97. Não houve nenhum "mea culpa" nacional. Nem está tendo agora depois do dito artigo. A morte dos sem-tetos parece lastimável, sem mais.
Deveríamos festejar, então, nossa capacidade de nos indignar, de compadecer e de nos questionar? Pode ser.

De qualquer forma, parece que, pelo mundo moderno afora, alguns adolescentes acham que matar mendigos e sem-tetos é programa. Esses assassinatos e ataques só podem ser a ponta de um vasto iceberg de ódio. Mas por que um adolescente passaria a odiar mendigos, excluídos e sem-tetos?

Certo: a sociedade sugere que esse jogo não constitui uma grande culpa. Em nosso mundo, eliminar um mendigo ou um sem-teto é como roubar algo que não vale nada, sei lá, um chiclete já mastigado.

Mesmo assim, os jovens que se envaidecem de matar um mendigo ou que acham graça em sacaneá-lo não devem agir só pelo prazer de confirmar um subentendido social.

Talvez os sinistros braseiros sejam os autos-de-fé da juventude: queimando (ou desprezando) mendigos e sem-tetos, os jovens reduzem a cinzas duas imagens.

Por um lado, eles exorcizam um futuro que poderia ser deles, tentam apagar uma ameaça de ostracismo que espreita suas vidas, caso eles viessem a fracassar.

Por outro lado, eles queimam (e aqui está o verdadeiro auto-de-fé) um destino que provavelmente eles desejam: uma hipóstase de sua possível revolta, de sua vontade de cair fora, pegar a estrada e presentear as exigências dos pais com um belo "beatnik" ou um "drop-out".

De fato, para um adolescente, o medo de não conseguir se conformar com ideais dominantes se confunde com a aspiração a ser diferente. Desprezar, sacanear ou mesmo matar mendigos, índios ou excluídos é uma maneira de lutar contra o pavor de fracassar ("apago o mendigo que eu mesmo, fracassando, poderia vir a ser") e no mesmo tempo de silenciar a aspiração a uma vida rebelde ("apago também aquele morador de rua que, contra todas expectativas, eu poderia gostar de ser").

Em suma, não deveríamos estranhar demasiado esses jovens sádicos e assassinos. Eles batem exatamente no que nossa cultura lhes ensina a detestar: o fracasso e sua própria rebeldia.