11 dezembro 1994

Sexualidade humana é totalmente desnaturada

Nossa espécie é a única, entre os mamíferos, que desconhece o ciclo

Robert Wright publicou dois meses atrás um livro, "The Moral Animal" (Pantheon Books). Não fosse hoje a tradução de um seu recente artigo no Caderno Mais! (págs. 6-4 e 6-5) o subtítulo do livro –"Eis porque somos do jeito que somos"– seria, aliás, suficiente para jogar a coisa no lixo sem tardar. Pois revela um artifício barato para nos adormecer. Convidado a descobrir o porquê, o leitor talvez esqueça de perguntar: mas somos mesmo do jeito que diz o senhor Wright?
Este escolheu, como é de praxe, autoridades presumíveis para escrever frases elogiosas na contracapa do seu livro: por exemplo –conhecidos no Brasil– Frank Sulloway, autor de "Freud Biólogo da Mente" e Peter Kramer, autor de desprezível best seller pseudomédico: "Escutando o Prozac".

De fato, Wright tem em comum com Sulloway um interesse pela biologia como campo onde os fenômenos psíquicos deveriam se explicar. Mas sua escolha de Peter Kramer é mais e reveladora.

Kramer ficou famoso por propor o uso de um antidepressivo, o Prozac, como panacéia de nosso tempo, transformador da subjetividade. Chegou até imaginar um futuro diferente para uma humanidade prozaquiana e sorridente.

Wright não deveria gostar de Kramer. Ele é demasiado convencido de que nossa natureza é feita de genes para apreciar as promessas da quimioterapia intervencionista. Mas a aliança com Kramer se dá de outro jeito. Ambos participam de um clima geral onde triunfa a convicção que o real, biológico ou químico que seja, oferece ou oferecerá as respostas para todos os problemas.
Nada surpreendente. Nossa cultura deixa os poucos de se referir a valores simbólicos, exalta a autonomia do indivíduo, mas chora sobre os belos tempos das certezas perdidas e conclama, com razão, que faltam critérios éticos. A época em que vivemos oferece duas opções substitutivas: em vez de critérios, encontramos imagens positivas ou negativas de homens e mulheres com os quais é recomendado se identificar ou não.

Em vez de sabedorias tradicionais, encontramos a autoridade do que é apresentado como a irresistível evidência do real, biológico, científico. Assim, parte da dita "comunidade homossexual" recebeu como ótima notícia a hipótese da existência de um gene da homossexualidade. Os lugares-comuns racistas de nossa cultura acharam, satisfeitos, fundamento no retorno dos testes de inteligência (cuja "cientificidade" está contestada há várias décadas).

O texto de Wright publicado neste número do Mais! vai nos dizer qual é a diferença científica entre homens e mulheres. O "gênero", Wright anuncia, não é uma construção cultural. Ele não vai perder tempo com incertas influências sociais, conjunturas familiares ou conflitos de ideais; vai nos dizer como as coisas estão assim por "natureza". Na verdade, ele vai promover ao estatuto de verdades naturais os lugares-comuns ideológicos que lhe parecem representar a realidade.

Se Wright tivesse tomado conhecimento dos trabalhos de Robert Stoller (de "Sex and Gender", Science House, 1968, até o último, "Presentations of Gender", Yale Univ. Press), talvez descobrisse que a patologia é às vezes de melhor conselho do que uma duvidosa normalidade.
Stoller mostrou que o sexo biológico de um sujeito não é constitutivo da identidade sexual. É possível ser homem ou mulher biologicamente (cromossomos, genitais externos etc.) e, apesar disso, se viver como do sexo oposto.

Esta vivência é a identidade de gênero, que se constitui a partir de uma série de fatores culturais, que ele enumerou cuidadosamente: a designação do sexo do recém-nascido pelos pais, a influência das atitudes dos pais, os padrões de manejo de seu corpo e as sensações, corporais e genitais, que confirmam ou não a designação pelos pais.

Estes fatores nunca teriam sido inventariados se Stoller não tivesse dedicado parte de seu trabalho clínico ao estudo de transexuais. Ele foi forçado a constatar a existência (e a relevância) de fatores determinantes da identidade de gênero, outros que o sexo biológico.

Além da diferença entre sexo biológico e identidade de gênero, se perfila um problema. Nem o sexo biológico, nem a identidade de gênero comandam as condutas sexuais de um sujeito.
Em suma, a mãe natureza (que, segundo Wright, misteriosamente coincide sempre com a tia evolução) mal dá conta do sexo anatômico. E este é apenas um fator lateral na constituição da identidade de gênero. A escolha de origem sexual e a orientação de nossas fantasias sexuais é outra história.

Quando Wright defende a idéia de uma diferença "natural" entre homens e mulheres, fala ou uma ingenuidade ou uma besteira. Que homens e mulheres sejam anatomicamente diferentes, já nos demos conta. Que as diferenças psíquicas entre eles como conjuntos estejam inscritas nos genes e decorram dos sexos anatômicos, aparece simplesmente falso.

Mas a maior prova da natureza ideológica e não-científica do trabalho de Wright é interna a seu discurso. Para Wright, a natureza é a evolução. Mas ele invoca a evolução para justificar uma espécie de metafísica natural das diferenças nos papéis sexuais e sociais. Parece que a evolução parou, é sempre conjugada ao passado (por exemplo: "durante a evolução, era geneticamente custoso...").

Por que parou, parou por quê? Um pensamento evolucionista consiste em pensar as mudanças, por inscritas geneticamente que sejam. Mas as mudanças são, para Wright, só as que já aconteceram, "nos tempos da evolução".

Tomamos sua tese central. Wright parte da idéia de que as mulheres são mais reservadas sexualmente que os homens, sabidamente mais caçadores, porque as mulheres reproduzem menos e portanto devem cuidar mais da qualidade dos genes dos parceiros. Os homens adoram jogar genes ao acaso, para as gerações futuras.

A pretensa constatação inicial (que as mulheres são menos promíscuas) é antes de mais nada um preconceito. Desta constatação preconceituosa, Wright deduz uma teoria fantasiosa do desejo sexual, o qual serviria aos imperativos de uma boa seleção genética para a continuação da espécie.

Ora, podemos até imaginar Henrique 8º transando com Ana Bolena e se excitando com a réplica que Hollywood lhe atribuiu: "Vou te encher de filhos. Certamente o desejo sexual pode se sustentar com as imagens da procriação. Mas será que alguém se excita pensando nos genes que lança para a posteridade?

Imagino que Wright se defenderia dizendo que a determinação do desejo pelas leis da evolução se situa aquém ou além da consciência. Embora eu pense que desejo minha parceira pelos seus belos olhos, essas fantasias estão sempre ao serviço superior de minha genética paixão de melhorar a visão das gerações futuras. E maldito seja quem deseja mulher míope!
Wright poderia ter refletido um instante no fato, banal, que a sexualidade humana tem justamente a propriedade de ser completamente desnaturada. Nossa espécie é a única, entre os mamíferos, que desconhece o ciclo; as mulheres não são férteis durante a menstruação, como fêmeas de mamíferos no cio, e a excitação sexual não depende nada da reprodução.

O próprio evolucionismo não é nenhuma norma ou lei da natureza, é a interpretação de uma contingência histórica da competição entre as espécies. A evolução darwiniana não implica nenhuma finalidade interna os seres, humanos ou outros. Mas a posição de Wright desliza de Darwin a Lamarck: ele começa por considerar a evolução selecionando as espécies que melhor se perpetuam e reproduzem e acaba imaginando que as regras da boa reprodução dirigem a sexualidade.

Ou seja, começa com Darwin (a evolução seleciona) e acaba com Lamarck (a função da perpetuação da espécie cria nossa sexualidade e nossa vida social como um órgão). Pode ser que a espécie humana seja ou venha a ser perfeitamente suicida. Certamente não pode ser que nossa compreensão de nós mesmos seja decidida pelas necessidades da reprodução.
Caso contrário, entra-se em uma armadilha teórica: como é que não dispomos de um gene ecológico que nos faça preservar nosso ambiente? Os genes da boa evolução podem ou não ser malthusianos?

Os feminismos que Wright discute e contesta em seu artigo são um adversário aparentemente fácil. Talvez defendam mesmo posições ideológicas pouco compatíveis ou contraditórias com as formas do desejo feminino em nossa cultura.

Quando, por exemplo, MacKinnon declara que cada relação heterossexual é um estupro, faz política e não ciência. Mas sua afirmação, pelo que deixa entrever de uma contradição-não resolvida entre dimensões diferentes da fantasia sexual feminina, carrega mais verdade do que o texto de Wright. Opor às afirmações feministas, por extremas e sintomáticas que sejam, um moralismo banal camuflado de inelutabilidade evolucionista, é estúpido demais.

20 novembro 1994

A mão que segura o berço não nina mais

Crianças deixam de ser depositárias de sonhos e tornam-se vítimas de um amor culpado e destrutivo


Há um mês, Pauline Zile, 24 anos, de Riviera Beach, Florida, apresentou-se à imprensa e à polícia como sendo a mãe com o coração destroçado pela perda de sua filha Christina, inexplicavelmente sumida em uma feira. Soube-se mais tarde que Christina fora de fato espancada até à morte pelo marido de sua mãe.

A história, por horrível que fosse, deixava pelo menos murmurar: não foi a mãe, foi o marido. Podia-se aparentemente esquecer que Pauline aceitara participar em uma farsa pública para desculpar seu homem, e –pior ainda– que ela devia então querer seguir vivendo com o assassino de sua filha.

O caso mais recente, Susan Smith, 23 anos, de Union, Carolina do Sul, não deixa esta escapatória. No 25 de outubro último, Susan declarou que seus filhos Michael de 3 anos e Alexander de 14 meses teriam sido raptados, com o carro dela, por um homem negro de quem forneceu descrição.

Seguiram-se conferências de imprensa, aparição na televisão com o marido e pai das crianças (de quem ela estava separada), batidas pelos campos da Carolina do Sul por policiais e voluntários, vigílias de prece nas diferentes igrejas de Union etc. Enfim Susan não aguentou e confessou que deixara ela mesma seu carro, com as crianças devidamente amarradas pelos cintos de segurança, deslizar nas águas escuras de um lago.

O marido e pai das crianças nada tinha a ver com isso; foi enganado como todos os outros. Parece que um atual namorado de Susan teria declarado que só aceitaria ficar com ela se não tivesse filhos. A imprensa e a opinião americanas jogam a carta eterna da perversidade humana ou do moralismo.

Mas os vizinhos de Susan não se convencem e seguem declarando que Susan adorava seus filhos. Provavelmente eles tem razão. E é bem por isso que o caso agita tanto a dita opinião pública. Se Susan fosse uma megera disfarçada, bastaria queimá-la (a cadeira elétrica substitui a fogueira). Mas se for uma mãe amorosa e assassina, as coisas se complicam.

Certamente nos próximos meses psiquiatras e psicólogos, forenses ou não, terão matéria. Contudo, a questão mais importante talvez não seja a hipotética dinâmica subjetiva que produziu o ato de Susan ou o de Pauline Zile. Talvez seja mais relevante considerar as reações que eles inspiraram.

A comunidade negra naturalmente protestou pelo racismo implícito na denúncia de Susan, e na imediata credulidade da comunidade de Union: para raptar criancinhas, só negro mesmo. Como sempre, o racismo consiste sobretudo, em delegar ao outro (ao negro de plantão, no caso) a parte mais preta de nossa própria alma.

Isso fica claro, por exemplo, quando nossas preocupações sociais se tingem de racismo (e negros malvados ameaçam o sono de nossas propriedades). Podemos apostar, neste caso bem brasileiro (quem disse que este país não é racista?), que as ditas propriedades são fruto de uma exploração que não reconhecemos, e cuja violência atribuímos às próprias vítimas. Em outras palavras, o receado latrocínio pelos negros é a caricatura da violência com a qual eles foram explorados e serve justamente para esquecer esta violência.

Do mesmo jeito, o suspeito negro de Susan Smith era perfeito para que não só Susan, mas todos pudessem esquecer qual é o lugar das crianças em nossa cultura hoje e quanto este lugar as torna vulneráveis à violência mais explícita. Em suma: para acreditar que os negros comem criancinhas, precisa estar com bastante apetite.

Tanto a conclamação de terror que estas condutas infanticidas parecem produzir, quanto a caçada racista ao famigerado negro testemunham de uma mesma tentativa: trata-se de ocultar, de esquecer algo que faz parte de nós. O quê? Que as crianças não são mais o estereótipo da busca da felicidade. Fazer a felicidade de filhos e filhas ou mesmo simplesmente planejar em vê-los ou vê-las felizes um dia não é, como já foi, em nossa cultura, o que nos faz sonhar.

Assim como criar crianças não é mais razão de ser. Preferimos estereótipos de felicidade para nós mesmos, imagens adultas de satisfação. Pauline preferiu o marido à filha e para Susan se suspeita que também tenha preferido sua liberdade solteira aos filhos.

Esta nova situação, que decreta o fim da infância como tempo privilegiadamente amado pelos adultos, não precisaria ser dramática. Ao contrário, poderia até constituir um excelente negócio para as crianças. Quem sabe parássemos de persegui-las com nossos sonhos e deixássemos viverem sua vida.

Mas não é assim. Vivemos numa época de transição; por isso, a contradição nos tortura entre nossas novas aspirações adultas e o antigo amor pelas crianças. As Paulines e Susans da vida parecem preferir ver suas crianças mortas do que amá-las menos do que a si mesmas. O próprio horror que estes contos da crônica inspiram na massa testemunha de uma exasperada declaração coletiva de amor, que é só uma expressão de culpa.

Conseguimos parar de amar as crianças como se fossem os únicos representantes de nossa felicidade, preferimos agora amar diretamente a nós mesmos, mas não conseguimos nos perdoar por ter assim mudado. Pauline e Susan, acredito, amavam suas crianças. Demais, como por culpa. Nós também estranhamos demais estes crimes, nos indignamos demais. E talvez seja pela mesma culpa.

O pai de Susan será certamente lembrado até não poder mais no processo: suicidou-se quando ela tinha sete anos. Os psiquiatras invocarão os nefastos efeitos do trauma. Mas este não concerne só a Susan. O suicídio do pai assume aqui quase uma dimensão mítica, como se fosse o símbolo de uma mudança pela qual os pais cessaram de ser pais, elos decisivos na cadeia das gerações, e decidiram ser simplesmente indivíduos.

Imaginamos um suicídio de desespero, por um fracasso, e acabamos supondo que um pai ou uma mãe só podem se matar legitimamente à condição de não mais depor seus anseios de uma vida melhor no futuro de suas crianças.

É frequente que sujeitos cujo pais ou cuja mãe se suicidou atravessem a vida lamentando não ter podido impedir o suicídio. Lamentam com razão não ter sido os depositários dos sonhos de seus pais, ou não tê-lo sido o suficiente para que os pais se contentassem de esperar de ver suas crianças felizes. Se os pais puderam se matar de desespero, se puderam parar de depositar esperança nos filhos, então o que conta para o órfão que sobrou é sua própria felicidade.

Por isso, elas podem facilmente se transformar em simples empecilhos no caminho da vida. Não seria razão suficiente para matá-las ou abandoná-las. A não ser que a culpa nos espreite, porque ainda as amamos. Precisará, neste caso, fazer desaparecer as crianças, ocultar assim o corpo de um delito que não é o assassinato, nem propriamente a mudança do amor. Na verdade não há delito, só perplexidade: a mão que segura o berço não sabe mais ninar, mas tampouco se autoriza a soltá-lo e acaba sacudindo a tal ponto que às vezes o nenê cai no chão.

06 novembro 1994

Toscani filósofo

Um grande sonho de nossa cultura nunca esteve tão prestes a se realizar: que, além e apesar de suas cores, crenças, culturas e tradições diferentes, os homens, enquanto indivíduos, se reconheçam enfim todos como membros de uma humanidade comum.

Mas o que há de comum? O que sobra, além do que parece nos separar em grupos distintos ou opostos? A premência da questão é grande, pois, libertando-nos do respeito aos valores ancestrais particulares, dinamitando as hierarquias estabelecidas e exaltando o indivíduo, nossa cultura complicou bastante a vida social. Como esta não pode mais se fundar sobre tradições de grupo, é preciso inventar um consenso idealmente universal. Mas qual?

Esta questão antiga recebeu duas respostas clássicas e não incompatíveis. A cristã: somos todos filhos de um só Deus; e a do espírito científico moderno: somos todos dotados de uma mesma razão.

Não parece que a resposta cristã tenha dado certo. A Bíblia conquistou novas terras para a cultura ocidental, mas não fundou consenso nenhum. Ao contrário, o espírito da Reforma triunfou, como era inevitável: uma religião onde Deus se endereça ao foro íntimo de cada um e não a um povo no seu conjunto só pode deixar cada indivíduo livre para interpretar a palavra de Deus, e enfim para imaginar o Deus que melhor lhe convém. Ótimo, mas sem muita chance de presidir um consenso social. Só nas culturas que resistiram ao expansionismo da nossa, por exemplo no mundo islâmico, a religião consegue ser o cimento da vida social.

O espírito moderno achou outra resposta à questão do que seria comum à humanidade inteira. Acreditou-se que a razão, como faculdade humana igual para todos, pudesse assumir a tarefa de organizar nossas condutas e os consensos necessários ao convívio. Não deu muito certo. Os doutores Kant, Habermas e Apel ainda estão sendo esperados na Bósnia e em alguns outros lugares. Também houve quem pensasse que a razão universal pudesse dar lugar a uma utopia coletiva discernível como alvo de nossa história. Como se sabe, não deu muito certo.

Um olhar simplesmente constatativo poderia nos ajudar a descobrir qual é hoje a nova universalidade que nossa cultura inventou: a única forma de controle social, o único efetivo agente regulador das condutas sociais que possa hoje ambicionar a palma da universalidade é o mercado, ou –melhor dito– o consumo.

É progressista e banal acusar desta circunstância os banqueiros de Londres, para falar como Mário de Andrade. Mas o consumismo não é o complô de sinistros especuladores. Antes de mais nada, ele é um grande movimento cultural. Talvez o maior na história de nossa cultura desde o cristianismo.

Graças a ele, mesmo vindos de horizontes disparatados, encontramos de novo uma convergência e portanto uma possibilidade de consenso social. Nem tanto ao redor dos objetos que o mercado propõe, ou do dinheiro que é seu equivalente universal, mas ao redor das imagens que temos em comum. São imagens da felicidade que o mercado nos promete ou, melhor, com as quais ele nos garante que acabaremos coincidindo se tivermos acesso aos bens que ele dispensa.

Se, como Toscani lembra, o gasto publicitário é maior em nossa cultura do que o gasto com a educação pública, então, antes de se indignar, é preciso reconhecer que a publicidade é hoje mais formadora de nossa subjetividade do que o ensino escolar. Ela é a maior expressão de nossa época, quantitativamente pelos investimentos que mobiliza, e qualitativamente por ser seu protótipo cultural, pois o consenso da razão contemporânea parece ser feito de imagens de sonho que nos convidam: sejam como nós. Imagens publicitárias.

É a dita cultura do narcisismo, onde o fundamento do laço social são estereótipos que todos queremos espelhar. Mandem para Bósnia: Valentino, Claudia Schiffer, McDonald's e, porque não, Benetton –quem sabe acalmem os espíritos. Os fundamentalistas islâmicos, que conhecem o problema, receiam acima de tudo o ingresso destes sonhos em seu mundo. Com razão: eles são a autêntica voz atual do Ocidente e de seu projeto universal.

Nunca então a vocação universal de nossa razão esteve tão perto de se realizar. Porque não celebraríamos este triunfo, como os missionários podiam exultar convertendo povos inteiros, ou os ilustrados constatando a queda dos preconceitos frente ao poder universal da razão?
De fato, a expansão do consumismo não nos garantiu a paz perpétua. Estamos permanentemente frustrados com os objetos e suas mágicas, pois evidentemente nunca coincidimos com as imagens sonhadas. Acabamos achando sempre que alguém, de perto ou de longe, mas sobretudo de longe, orquestra nossas frustrações.

Além disso, o consumismo é ao mesmo tempo o maior sucesso e a maior ameaça da história de nossa cultura: realizou um consenso quase universal, mas fundou este consenso em uma estereotipia dos sonhos, ou seja, do motor mesmo da autonomia do indivíduo e da invenção histórica. A razão do ocidente arrisca a se cristalizar em uma forma deteriorada de sociedade tradicional: um exasperante conformismo.

Há vários caminhos de revolta contra o momento atual de nossa cultura.

É possível, por exemplo, renegar a própria idéia de universalidade do humano, aspirar a uma volta a qualquer forma de tribalismo. Não é o caso de Toscani: sua tolerância, seu interesse para as diferenças são liderados por uma mensagem universal, como só nossa cultura, aliás, sabe produzir.

A estratégia de Toscani aposta na idéia que, reconhecendo e se servindo da própria potência do mercado e do consumo, seja possível promover um universal humano que não se reduza às imagens estereotipadas de falsa felicidade próprias à comunicação publicitária dominante. Por isso trata não de destruir, mas de modificar o instrumento cultural decisivo de nossa época: a publicidade. Toscani propõe valorizar as marcas (o que pode satisfazer o mercado) pela propagação de mensagens. As marcas poderiam valer e também vender por sua capacidade e sobretudo qualidade comunicativa. A sedução dos produtos passaria pelo interesse humano, político e mesmo intelectual das mensagens que os produtores comunicam.

Os próprios produtos, aliás, se encontrariam modificados: sua concepção não seria decidida pela suposta sedução das imagens que podem compor, mas pela inteligência do mundo que produziria uma nova comunicação. Cada empresa concorreria com as outras produzindo comunicação.

É bem possível que, em nossa cultura hoje, qualquer mensagem ou qualquer conjunto de mensagens só seja recebido como corolário de um estereótipo a mais. O homem Benetton seria diferente do "Marlboro man", seria mais um médico sem fronteiras do que um caubói, mas ainda seria uma imagem proposta aos nossos sonhos.

É também possível que a valorização das marcas não reserve um futuro melhor do que os estereótipos da publicidade dominante. Nos últimos anos, particularmente no vestuário, a marca é exibida, e não só para escrever publicamente nossa relação com a felicidade que sua publicidade promete. Frequentemente, aliás, ela é perfeitamente desconhecida.

Tudo acontece como se sua simples exibição a enobrecesse e nos enobrecesse com ela. Não seria totalmente louco imaginar um mundo onde ao consenso produzido pelos sonhos publicitários comuns se oporia uma divisão em clãs. Sem a mediação da imagem, as marcas funcionariam como tantas tatuagens tribais. Um mundo de torcidas organizadas.

Mas o momento talvez não seja para previsões pessimistas. Toscani trabalha para que, mesmo no mundo do consumo e das imagens, o imaginário narcísico não se torne o universal dominante. Inventa e produz justamente imagens que não possam ser recebidas como propostas feitas ao consumidor para que com elas se identifique.

O catálogo em Gaza é um exemplo: ninguém comprará Benetton por querer se parecer com a pobreza e a tragédia palestina. Para reconhecer que os palestinos são nossos semelhantes, tão humanos quanto nós, não será necessário recorrer à mediação de uma top model, ou seja descobri-los humanos porque sonham com os mesmos estereótipos que nós, bastará encontrá-los, na banalidade de seu cotidiano, não travestidos, só vestidos um pouco com a nossa mesma roupa.

Que ninguém se preocupe demais: o imaginário é tenaz e os caminhos da boa consciência são infinitos. Os palestinos de Gaza podem nos atrair não pelo sonho de sermos como eles, mas pela sedutora certeza de sermos, no fundo, o sonho deles. Do mesmo jeito, a contemplação do sangue de Sarajevo como o drama da Aids podem fazer apelo a um humanitarismo fácil que a pouco preço coroa nossa elegância com um toque de consciência civil.

Não pararemos tão cedo de sonhar coletivamente com a publicidade. E, se parássemos, qual nova universalidade nos espreitaria?

Toscani é um homem do século 18. A mensagem que lhe importa comunicar por suas imagens é um breviário do Iluminismo: universalidade do homem, crítica das religiões como fonte de preconceito, pacifismo racionalista, tolerância, fé na razão.

Mas o importante talvez é que se tente pelo menos demonstrar a possibilidade que a maior expressão de nossa cultura, a publicidade, comunique algo diferente das mascaradas de felicidade que parecem constituir hoje a razão do Ocidente.

Gaza cai nas malhas da Benetton

O território palestino é o novo cenário do fotógrafo Oliviero Toscani


Levou um certo tempo para acalmar as suspeitas legítimas da jovem mulher da segurança israelense da companhia aérea El Al no aeroporto de Tel Aviv. A história parecia incrível: viera a Israel e a Gaza para ver Oliviero Toscani, art-director da Benetton, que decidira fotografar seu futuro catálogo em Gaza, usando como modelos pessoas escolhidas nas ruas.

Teria sido uma conversa quase divertida, se não fosse a data. Era o 19 de outubro, à noite. Israel chorava as vítimas do atentado terrorista a um ônibus na avenida Dizengoff, em Tel Aviv, em que morreram 23 pessoas.

Enfim, a jovem mulher acreditava na minha versão dos fatos, mas queria saber como eu me situava. Havia em seus olhos uma espécie de dor profunda, um medo de traição. Me devolveu bilhete e passaporte. Agora eu podia falar.

Avancei até o balcão e segui para as formalidades da polícia. Não conseguira lhe dizer quanto eu sentia. E não podia evitar de me desprezar como um amante que covardemente abandonaria sua amada na hora do desespero. Me sentia culpado de ter ficado em Gaza, culpado por deixar Israel em sua dor e luto. Havia, neste sentimento espontâneo e excessivo, uma sinceridade acima de qualquer ideologia. Como se, na hora do perigo, reconhecesse instintivamente os meus. Mais quais meus? Se não sou judeu, porque seriam os meus?

Imagens do horror

Tudo começara um mês antes. Oliviero Toscani anunciou que viajaria a Gaza para fotografar o próximo catálogo Benetton. Usaria o povo da Palestina como modelo. Não queria propor o encanto de falsos sonhos de poder, glória e sex appeal, que a publicidade de moda geralmente promete a seus consumidores. Gaza é o símbolo de um fracasso da razão em conciliar diferenças, mas também, com o progresso da paz, um lugar de esperança. Qual melhor escolha para afirmar e confirmar o Iluminismo de Toscani? Aqui a razão triunfaria.

Naturalmente, era difícil prever que nossos dias em Gaza se situariam exatamente entre o trágico desfecho do sequestro de Nahshon Wachsman e o atentado assassino de Tel Aviv. No almoço do último dia, consternados na frente da televisão, olhávamos desfilar as imagens do horror na avenida Dizengoff. Toscani repetia: "Tudo errado, fazem tudo errado". Preferia pensar o horror como fruto de um simples erro da razão do que admitir que todas as cores talvez não sejam United Colors of Benetton.

A Renault vermelha

Para entrar em Gaza, é preciso trocar de carro. As placas israelenses não se aventuram do outro lado. O "checkpoint" Erez estava fechado quando cheguei, como estaria de novo no momento de nossa saída; fechado, entenda-se, aos habitantes de Gaza que desejam entrar em Israel. O governo israelense reage assim às agressões palestinas. Faz sentido, pois é provável que ativistas do Hamas (grupo radical islâmico) penetrem no país com o fluxo diário de dezenas de milhares de trabalhadores.

Mas a decisão alimenta uma espiral de ódio e ressentimento: quando os homens não podem atravessar a fronteira, a vida econômica de Gaza sofre imediatamente, assim como sofre seu orgulho de independência. Desvela-se a paródia da atual autonomia: a rede elétrica se alimenta em Israel, as telecomunicações dependem de Israel, não há passaporte, nem nacionalidade palestina. Ressurge então o espírito da Intifada, que dá crédito livre ao Hamas e enfraquece as chances de paz, com a autoridade de Fatah (principal facção da OLP - Organização para a Libertação da Palestina).

Esperei o carro previsto perto da entrada lateral do "checkpoint". Os marines israelenses eram cordiais, procuravam lembranças comuns de cidades italianas e ofereciam Heineken gelada. Aceitar era inevitável, assim como bebê-la ostensivamente. "Este bebe cerveja, é dos nossos!" Apesar disto, um palestino tentava chamar minha atenção. Perguntou enfim de onde eu vinha. Itália e Brasil caíram bem, ele tinha um tema na mão: a última Copa, a famosa final. O caporal israelense cortou seco a conversa, apostrofando-o: "Mas você fala bem inglês...". A nova partida ecoou como o começo de um interrogatório ameaçador.

O palestino recuou e os militares contra-atacaram, me perguntando se queria tirar umas boas fotos do "checkpoint". Os poucos palestinos que voltavam para Gaza foram então inspecionados com largos gestos abertos e posados. Parecia que ambos os lados estavam competindo por um gesto de cumplicidade e aprovação. Pareciam perguntar: "Com quem estás?" Não reconhecer os seus é difícil em Gaza.

Alberto, o representante de Benetton em Israel, encostou seu carro ao lado do "checkpoint", para que se pudesse melhor escutar o rádio. Era uma Renault Clio novíssima, vermelha. O brilho do objeto venceu: os soldados se agruparam ao redor do carro, deixaram de encenar para mim o controle de polícia e, para cima da fronteira, todos começaram a falar juntos, de cavalos a vapor, preços e coisas de carro. Era um presságio: como se um futuro de paz não devesse ser esperado de um diálogo entre culturas ou religiões diferentes e inimigas, mas de uma nova religião comum já pronta: a fantasmagoria do consumo.

Carona do consumo Em Gaza, muitos perguntariam: "Abrirá uma loja de Benetton aqui?" Como se só o acesso ao consumo pudesse, para além de qualquer palavra, significar o acesso de Gaza ao convívio das nações. Mas o próprio desejo de modernidade acarreta ódio e desconfiança. Pegar a carona do consumo implicaria aceitar ser, por um longo momento, um povo de segunda linha. É difícil, para quem adquiriu consciência de ser um povo em quase 50 anos de desastre e de luta. A modernidade desejada torna-se sempre persecutória, pois embarcar nela é também necessariamente ser frustrado dos bens que ela promete. O Hamas fatura.

Gaza não é o Irã nem o Iraque. No mínimo, os palestinos, dispersos no exílio, viajaram demais para cultivar uma incontaminada pureza cultural. Dividida entre as aspirações ou a "Realpolitik" de abertura da OLP (o acrônimo da sigla árabe, "Fatah", significa "abertura") e, por outro lado, o espírito do Movimento de Resistência Islâmica, o Hamas (o acrônimo significa "ousadia, agressão, coragem"), Gaza não é uma diferença absoluta.

As pessoas escolhidas como modelos ocasionais pela equipe de Toscani eram convidadas a responder a algumas perguntas. Suas respostas eram extraordinariamente uniformes: "Não gosto de política, a economia está um desastre, mas temos uma sociedade muito boa, a paz é uma grande esperança, aceitamos ser fotografados para mostrar ao mundo que somos pessoas como as outras".

Eu me perguntava o que podia esconder a repetida declaração que "a sociedade é muito boa". Pois, de fato, via um povo dividido entre a necessidade e a vontade de oferecer uma nova imagem de si, pacífica, aberta, seduzida pela modernidade e, por outro lado, a defesa fundamentalista das tradições islâmicas ou o rancor dos excluídos. Mas a fratura é inconfessável.
O Hotel Marna House é um dos raros lugares, com o Beach Club da ONU, onde é possível, em Gaza, beber uma cerveja. Daí o desfile vespertino de homens notáveis. Sentados em mesas diferentes, muitos deixam a mão com o copo descansar distraidamente sob a mesa. Nem a cumplicidade de uma falta comum contra a tradição religiosa lhes permite assumi-la. Fatah e Hamas em cada um.

No pátio do hotel, Toscani, Frédéric Vassor –cameraman da equipe– e eu conversamos com Hassan Dahman, representante da OLP em Paris, temporariamente em Gaza. "Os estrangeiros", ele diz, "são bem vindos a Gaza. Queremos dar uma imagem do povo palestino diferente daquela da Intifada, das pedras e das armas". Vassor não perde a ocasião: "Vocês procuram uma nova imagem?". Reação imediata: "Não, não, a imagem é a mesma, o povo palestino não mudará, é o mesmo. É a propaganda que criou esta imagem de armas e pedras".

Seduzir é a palavra de ordem. Um pouco mais tarde falamos da reação israelense ao sequestro de Nahshon Wachsman. Dahman comenta: "Os israelenses montaram esta história de refém em Gaza. E com estas prisões, eles nos atrapalharam". Depois da morte de Wachsman, Fatah prendeu 300 militantes de Hamas. Dahman parece admitir que foi para satisfazer o governo israelense e mesmo pensar que Israel fomenta assim a divisão em Gaza.
Corão e metralhadora

De fato, à tarde, e ainda na manhã do dia seguinte, veremos desfilar manifestações coesas para forçar Arafat a soltar os militantes do Hamas. É péssimo ibope para a Fatah, certo. Mas o inimigo é mesmo Israel? Cansado de escutar bobagens, largo: "Os israelenses tinham toda razão de pensar que o refém estivesse em Gaza, dado que o Hamas tornou público em Gaza a fita na qual Wachsman pedia que as reivindicações dos sequestradores fossem satisfeitas. Parece-me que o Hamas fez tudo o que podia para incomodar a Fatah e o governo de Arafat". Dahman pulou na sua cadeira: "Não! Não! Eles não quiseram nos incomodar". E de repente: "Você não está gravando tudo isso, está?". Desliguei o meu gravador.

Toscani, provavelmente para se convencer, declarava: "Aqui haverá um futuro, será mais rápido do que parece". Mas o impasse é violento. Quanto mais Arafat negocia a paz para construir uma nação, tanto mais Hamas se afirma como única bandeira do orgulho nacional. O Hamas, aposto, não se apresentará nas futuras eleições. E sobre os muros de Gaza, a imagem do Corão aberto se espelha no desenho de uma metralhadora Kalachnikov.

Na tarde de terça, permaneço no hotel. Converso com um amigo de nosso intérprete. Impossível falar sobre o que nos separa; só quer ouvir o que nos aproxima. Explico-lhe as razões francesas para não aceitar que nas escolas públicas, na França, as jovens islâmicas portem o véu. Ele defende uma tolerância aparentemente mais ocidental do que a minha. Tento lhe responder que a tolerância não é uma escancarada indiferença, mas a defesa positiva de um valor. Portanto, ela pode implicar também uma oposição declarada contra qualquer cultura que aproveite dela sem praticá-la.

Ele me responde que a desconsideração dos infiéis, assim como o ódio indiscriminado que podia permitir, são, para eles todos, coisas de museu. Na manhã seguinte, após o atentado de Tel Aviv, nos encontramos na frente da televisão. Nós nos fixamos longamente em silêncio. Continuo sem saber ler seu olhar: medo da condenação injusta por um crime que ele renega, revolta pela desconfiança que talvez já leia em meu olhar, ou talvez também orgulho e desafio.
Pulôver e cafetã

No último dia, a equipe visita a casa dos órfãos que Arafat adotou. São mais de 50 crianças e adolescentes que perderam os pais quer seja no massacre de Sabrá e Chatilá, quer seja na batalha do Líbano. Pela primeira e única vez, Lloyd, o maquiador, será autorizado a colocar, não digo uma mão, mas pelo menos um pincel no nariz de uma adolescente. Nota discordante, na frente da casa: soldados palestinos vigiam e afastam, peremptoriamente, qualquer curioso. A abertura é envergonhada.

Mas, nesse fim de tarde, antes da saída, com a última luz do sol, há na equipe um sentimento geral de missão cumprida. O humanitarismo está satisfeito. Benetton deixa com os órfãos as peças-piloto trazidas assim como uma doação em dinheiro. Esquecemos as raras recusas e preferimos lembrar a disponibilidade até de idosos tradicionalmente vestidos que aceitaram colocar um pulôver por baixo do cafetã para mostrar ao mundo que a Palestina é parte dele.

Gaza parece perto de nós. Era o que Toscani queria. De repente, ele pergunta a duas adolescentes gêmeas onde elas nasceram. "Na Romênia", respondem. Volto para uma realidade feita, no passado, de campos de treino para militantes do terror, atrás da Cortina de Ferro; e ainda feita, no presente, de campos na Síria, talvez na Líbia, no Iraque, no Irã. O Hamas nas ruas e o Hamas em cada um mantém este povo refém de si mesmo.

28 agosto 1994

Servidão ao amor desafia espírito objetivo

O amor é uma peça essencial de nossa cultura. Sua fortuna é indissociavelmente ligada aos progressos do individualismo. E de fato ele participa ativamente na luta para o triunfo do indivíduo: atropela a sociedade tradicional, acaba com barreiras sociais entre trovadores e damas, despreza antipatias bem estabelecidas entre Montecchi e Capuleti. Raças, culturas, religiões, preconceitos: as formas coaguladas do espírito objetivo lhe resistem dificilmente.

"Eu (te) amo" ou "nós (nos) amamos" são referências últimas e soberanas, indiscutíveis, por serem, linguisticamente, performativas. Independentemente de atos e obras, estas expressões só se referem a si mesmas. A prova que "nós (nos) amamos" é nossa declaração, portanto irrefutável. Atrás dela se supõe uma efusão tão íntima que sua sinceridade só pode ser decidida por quem declara.

Daí o sucesso moderno do amor como motor do agir humano: ele é uma razão perfeitamente subjetiva. O que fazemos por amor, fazemos por nós mesmos. Amando, não obedecemos a ninguém, se não à paixão que é nossa.

Assim nos casamos ou vivemos juntos porque nos amamos. Qualquer escolha fundada em um outro critério é –em nosso moderno ver– estigmatizada como hipócrita ou interesseira. Assim também cuidamos de nossas crianças porque as amamos. Qualquer outra razão, mais simbólica (assegurar a descendência, por exemplo) ou mais realística (criar braços para trabalhar a roça) é suspeita. Pois tais razões testemunham uma servidão a princípios externos que ofendem nessa sede de autonomia.

Se o amor é uma realização do indivíduo, se seu triunfo social é próprio ao individualismo, além de um performativo, talvez ele seja mesmo um verbo intransitivo: podemos nos perguntar se seu objeto é bem o outro amado e não o próprio sujeito que ama e, assim fazendo, goza sobretudo de sua autonomia. Em época de aniversário de Woodstock, as tiras de Angeli, na Ilustrada, sobre os casais apaixonados são apropriadas. A nua marginalidade social da exaltação amorosa dos casais derrama um narcisismo gosmento que é provavelmente a verdade última de "Love is all you need".

Justamente, o caderno Mais! de 24/7/04, consagrado ao fim da infância em nossa época, em seu conjunto, chamava a atenção sobre a índole narcísica de nosso amor pelas crianças. Amamos as crianças como imagens de nossa própria felicidade. Acabamos assim querendo-as tão parecidas conosco, em sua felicidade forçada, que as privamos de infância, transformando-as em caricaturas de nossos devaneios.

Ora, Marcelo Coelho, em sua coluna na Ilustrada de 3/8/94, observava que, nesta transformação das crianças em anões sem fé nem lei, alguma responsabilidade devia ser atribuída às famílias e à "crise de autoridade". "Os pais –ele escrevia– vivem na ideologia anti-repressiva, de estímulo à espontaneidade e à liberdade que talvez não tenham tido..." Ele tem razão. Mas a responsabilidade pela dita crise de autoridade está também com o amor.

Já em 1977, Christopher Lasch ("Refúgio num Mundo sem Coração", Paz e Terra), analisando a família dos anos 60 e 70 nos EUA, notava que esta tendia a limitar sua vocação à tarefa amorosa, delegando cada vez mais suas tarefas educativas. A consequência que mais o assustava era a massificação: pois, se o quadro familiar e privado é só efusão amorosa, entende-se que uma mesma esfera pública –a da opinião– educaria a todos e acabaria uniformizando a todos. Assim, o mundo moderno, por valorizar o indivíduo e sua liberdade, necessariamente massificaria seus filhos. O triunfo do amor nos laços de família (entre pais e filhos) realizaria a sociedade de massa.
Mas, como Marcelo Coelho também observava com razão, as coisas se complicam. Os laços construídos ao redor do amor são dos mais precários; os casamentos por amor duram menos, ao que parece, do que os contratos do passado. E, quando duram, podem doer mais (tipo: nossa vida é um inferno, a gente não se entende, mas ficamos juntos porque nos amamos). Do mesmo jeito, os deveres tradicionais para com as crianças eram de mais fácil observância do que o imperativo de amá-las. Este, por exemplo, joga na angústia e na culpa os pais que achem seu amor insuficiente, o que é frequente, se o amor é aqui sobretudo a necessidade narcísica de ver suas crianças felizes. Qualquer obstáculo real ou imaginário oposto a este ideal de felicidade (por exemplo, uma mínima intervenção educativa) acabará impondo aos pais uma culpa de algoz arrependido. E por aí vai.

Abrem-se dois caminhos para o reinado do amor (narcísico) como afeto propriamente individualista.

O primeiro pode inspirar um certo apocaliptismo (com despachos para evocar antigos valores perdidos). Nele, depois de ter inventado a infância como época feliz e distinta da vida adulta, depois de ter transformado as crianças em caricaturas da felicidade adulta para melhor se espelhar nelas, os sujeitos da cultura ocidental conseguiriam inventar um narcisismo mais direto, não mediado pelos seus rebentos. Eles fariam assim a economia da tarefa reprodutora. Criariam uma sociedade de adultos na idade certa para gozar de sua conformidade com as imagens da felicidade de massa, afastando os velhos e resolvendo o problema demográfico graças a uma porosidade controlada das fronteiras. A mais longo prazo, também seria possível fazer a economia dos empecilhos que os parceiros colocam à relação amorosa. A realidade virtual poderia permitir, por exemplo, que cada um se juntasse com a imagem projetada de sua própria perfeição.

No segundo caminho, nossa cultura inventaria novas formas de amar crianças e parceiros. Para saber quais e como, só um conselho: precisa ficar de olho na literatura e no cinema. Pois, em uma cultura individualista, não a tradição, nem a história, mas a ficção –já dizia Mathew Arnold– é o grande repertório ético onde se inventam, se canonizam e se propõem condutas. Por isso, como Jurandir Freire Costa o mostrava nesta coluna (31/7/94), "Quatro Casamentos e um Funeral", de Mike Newell, por exemplo, deixa esperar convívios amorosos, se não mais felizes, ao menos mais leves: uma espécie de savoir-faire com o narcisismo.

21 agosto 1994

Um marcísico mundo novo

Numa cultura narcisista realizada, a ação política só será possível se seus sujeitos aceitam seu funcionamento


Um sujeito, em princípio, se constitui por dois caminhos. De um lado, se identifica aos valores, obrigações, tradições que cada um recebe de sua cultura étnica, nacional, familiar etc, (estas são as identificações simbólicas). Do outro, se esforça para coincidir com a imagem que poderia satisfazer aos outros (primeiro aos pais). Este esforço é –resumidamente, para a psicanálise– o narcisismo, mais incômodo do que simplesmente se apaixonar por seu próprio rosto.

Pois, como escolher a imagem que poderia agradar? Os outros são muitos e talvez nem saibam direito o que gostariam que fôssemos. Mesmo quando as imagens propostas parecem estabelecidas, fica a dúvida –radical em nossa cultura– que os outros queiram de nós justamente que sejamos diferentes de tudo o que esperam: únicos.

A complicação não para aí: a unicidade que pareceríamos dever alcançar precisa se tornar uma vinheta, uma moda, para que se confirme nossa identidade com ela. Assim, por exemplo, pinto os cabelos de verde para ser único, mas preciso da moda punk para estar certo que minha unicidade (que já não existe mais) segue o figurino.

Dos dois caminhos constitutivos da subjetividade qual prevalece hoje?

Para a modernidade desde o fim do século 18, o indivíduo em sua autonomia vale mais do que a comunidade que o abriga. É provável então que ele recuse o patrimônio herdado e que, para ser alguém, lhe sobre correr atrás de imagens. Todo o mundo, aliás, concordará que, em nossa época, diluem-se os valores e as referências tradicionais e, talvez momentaneamente, prevaleçe a caça às imagens agradáveis (aos outros).

Mas só poucos radicais se aventurarão a concluir que o sujeito contemporâneo não entra no mundo por identificação simbólica. Eles dirão que o homem de hoje é narcísico, se constitui só seguindo a sedução das imagens que o mundo lhe propõe e com as quais ele tenta –na falta de identificações– arrumar uma identidade.

Se eles tivessem razão, qual seria nosso narcísico mundo?

Imaginemos uma sociedade onde qualquer referência seja imaginária e nenhuma simbólica. Ou seja, por exemplo, onde a imagem de um candidato conte mais do que seu programa político, e seu programa conte mais pela imagem de homem de bem que ele garante do que por algum valor intrínseco ou racionalmente objetivo.

Imaginemos uma sociedade onde paradoxalmente convivam a procura por cada um de uma imagem de absoluta singularidade e a conformidade de todos a imagens pré-fabricadas. A arte desta sociedade, por exemplo, detestará os cânones e privilegiará a expressão contra a representação. Também a inovação será para ela um valor em si, embora fadada a se tornar moda. A vanguarda de cada dia entrará no museu no dia seguinte.

Nesta sociedade a procura será grande para qualquer tipo de fundamento fixo, além do desfile das imagens. Na falta de respaldos simbólicos tradicionais,

1) um fundamento poderá ser encontrado no real. Assim, por exemplo, cultuar-se-á a sobrevivência como valor supremo, a forma física e a boa fisiologia do corpo como bem objetivo. A referência moral será higienista e ecológica, e o discurso científico, por parecer também isento do engano das aparências, será considerado como possível fonte de sabedoria. As pessoas se reunirão segundo critérios reais, pois estes aparecerão como os únicos autênticos: por exemplo, a cor da pele, o sexo, a preferência sexual entendida como destino fisiológico etc.

No mesmo sentido, para que o status social seja comprovado além das aparências, a posse de objetos será critério de valor. Em um desenvolvimento extremo desta tendência, a toxicomania surgirá como sintoma social, pois a droga, a equivalente geral dos objetos, poderá aparecer como a única resposta real (não imaginária) ao anseio (imaginário) de felicidade.

2) será onipresente a invocação nostálgica de tempos antigos onde os valores simbólicos regiam o comércio humano. Invocar-se-á assim família, solidariedade, dever, valores, ou mesmo a razão objetiva para desmistificar o mundo das imagens. Mas, em ambos os casos, longe de se propagar valores simbólicos novos ou antigos, de fato propagar-se-ão ainda algumas imagens: a do ruralista, do tradicionalista, do intelectual etc.

3) frequentemente a procura de um fundamento levará as pessoas a se agarrar em identidades imaginárias, como se estas fossem propriedades intrínsecas de seu ser. As possibilidades de diálogo, negociação e conciliação entre identidades diferentes serão difíceis, pois, à diferença dos valores simbólicos, as imagens narcísicas –embora substituíveis– são, uma vez assumidas, compactas e inalteráveis.

Assim ateus poderão se enfrentar e se exterminar por razões religiosas; povos culturalmente próximos procurarão diferenças mínimas para se opor e assim conhecer a relação que reserva o sentimento de aderir a uma identidade.

A sociedade como um todo desprovida de valores simbólicos e também –por sua fragmentação– de uma imagem própria, impotente, só poderá opor, ao separatismo das identidades que se multiplicam, as hipótese de alguns mínimos direitos e deveres que ela tentará atribuir à espécie humana como grupo justificado pelo real biológico. Nos melhores casos, a vida social será possível graças a um respeito escrupuloso das leis positivas. Mas estas não deverão sua autoridade a nenhuma tradição ou valor transcendente, pois, no reino dos indivíduos narcísicos, as leis só valerão como expressão de uma hipotética vontade comum.

Nesta sociedade, no lugar da tradição, como critério de referência, estará a opinião pública. Não seria de se surpreender se esta acabasse, por exemplo, dominando o próprio exercício da lei positiva, decidindo de culpas e inocência muito além da verdade dos fatos ou da letra da lei.
Herdeiro da literatura, o cinema constituirá o grande repertório das identidades desejáveis e a televisão será o consolo da vida, assegurando a todos que qualquer miséria pode ter dignidade de imagem.

Esta sociedade será considerada por muitos como conclusiva. E, de fato, opor-se a ela, produzir uma contradição radical, não será simples. Pois a contradição não escapará ao imaginário social: será de antemão uma identidade imaginária que este contempla. Dificilmente o apelo a uma verdade poderá induzir os sujeitos a desistir das imagens que os seduzem e às quais devem sua consistência. Tanto mais que uma volta às obrigações de uma tradição ou sistema de valores implicaria renúncia à liberdade de se imaginar. Nesta sociedade, uma estratégia de ação política será possível só à condição que seus sujeitos aceitem seu funcionamento e nele se reconheçam, sem culpa ou nostalgia.

Isso, por via dedutiva, seria uma cultura do narcisismo realizada. Como se constata, ela está muito longe de nós. Ou não?

24 julho 1994

Vestida de feliz, a criança é a caricatura da felicidade impossível

Como amamos as crianças! Nenhuma passa perto sem levar uma carícia. Mas por que as amamos tanto? Não é nada natural. Em nossa história passada, não as amamos sempre do mesmo jeito, nem tanto assim.

A infância, como mostrou Philippe Ariès ("História Social da Criança e da Família"), é uma invenção moderna. Este tempo separado da vida adulta, protegido pelo amor parental, miticamente feliz, surgiu em nossa cultura há apenas dois séculos, quando o individualismo triunfou no Ocidente.

É neste momento –também lembra Ariès– que a morte cessou de ser vivida como um acidente ao qual sobreviveriam a cadeia das gerações e a ordem social, para se tornar a irremediável e trágica desaparição dos indivíduos. Para quem a morte é o fim de tudo, só as crianças trazem consolo, representando alguma promessa de imortalidade.

Do mesmo jeito, naquele momento-chave de nossa cultura, a idéia de felicidade mudou de rumo: aos poucos parou de se alimentar na calma de uma ordem estabelecida ou na visão futura de novas relações sociais, para ser um direito do indivíduo. Direito cujo exercício não é nunca perfeito, e que se torna um dever para os herdeiros: nossas crianças.

Não estranha então que Freud (embora convencido de estar descrevendo um universal trans-histórico) nos dê esta explicação do amor moderno pelas crianças: as amamos como ectoplasmas de uma perfeição que os avatares da vida já nos recusaram. Delas esperamos que nos ofereçam a imagem de uma plenitude e de uma felicidade que não é, e nunca foi a nossa, mas graças à qual podemos amar a nós mesmos. Olhamos para elas como para uma foto de nossa infância onde queremos parecer felizes. E para isso as protegemos, cuidamos e satisfazemos.
A criança é a caricatura da felicidade impossível: vestida de feliz, isenta das fatigas do sexo e do trabalho, idealmente despreocupada.

Pois bem, será que hoje nosso amor para as crianças é ainda aquele que surgiu com a modernidade? Será que a infância que nossa cultura inventou ainda existe e resiste? Já Ariès, nos meados dos anos 70, duvidava que a infância por ele trazida à luz ainda durasse.

As aparências podem ser significativas: não vestimos mais as crianças de crianças, mas de "adultos em miniatura", como assinala Olivier Mongin no seu artigo (à pág. 6-7). Dir-se-á que particularmente aqui no Brasil são os adultos que se vestem como crianças. De fato, as crianças se fantasiam de adultos de fim de semana. Desses, elas adotam os modos, as pretensões e o incômodo imperativo de aproveitar a vida.

As coisas mudaram aos poucos; nosso olhar procurava a sossegada imagem de uma felicidade infantil em um mundo encantado, feito de vestidinhos de renda e blusas de marinheiro. Depois, desejosos de garantir à criança um acesso à vida adulta, mesmo ao custo de comprometer o mundo de Oz, passamos a vesti-las de terno e gravata ou de saia plissée.

Hoje –síntese hegeliana– elas seguem a imagem da felicidade dos adultos: roupa esporte e fantasias de Xuxa. Ao instantâneo desbotado do nenê sem sexo, à foto amarelada do homenzinho e da mulherzinha de blazer, se substituiu um cartão postal que se parece com o folheto publicitário de um pacote de férias, vôlei na praia e promessas eróticas.

Na mesma linha, o ideal proposto à criança não é mais o porto seguro de um quadro familiar ordenado pelas gerações, nem a antecipação de uma adaptação ao mundo dos grandes, mas, como mostram Alfredo Jerusalinsky e Eda Tavares (leia artigo à pág. 6-5), é a identificação com o super-herói cuja única dependência é com um objeto mágico. Como não constatar que a felicidade que queremos contemplar nelas é a caricatura de nossos devaneios? As queremos paradoxalmente livres de nós, assim como sonhamos ser livres de nossos pais, e possuidoras de objetos, pois atribuímos aos objetos o valor de talismãs.

A nova forma de amor consiste em suma em querê-las independentes de penosas obrigações (contrariamente aos grandes), mas (como os grandes) dependentes dos objetos de satisfação que tentamos colocar ao alcance de sua mão. Não é de estranhar que isso as destine com frequência à adição. Pois a equação simbólica não escapa a ninguém, que vai do cinto de Armani ao martelo de Thor e acaba na heroína (o alcalóide).

Também não seria de estranhar que as crianças, de repente, possam se tornar tão assassinas e cruéis quanto nós. Pois os "adultos em miniatura", para serem felizes, devem manter da infância justamente a isenção daqueles estorvos que nos fazem tão pouco amáveis aos nossos próprios olhos; o peso do dever e da dívida com as gerações anteriores, a hesitação do juízo moral, o rigor da Lei. Em suma, queremos que sejam anões de férias sem lei. E podem acabar sendo.

Se precisasse datar esta nova forma de amor, pela qual as crianças são convidadas a uma rebeldia que lhes outorgue a felicidade que queremos para nós, sem dúvida o fim dos anos 60 seria o momento. Neste sentido, maio de 68 obedeceu, paradoxalmente, ao mandato do narcisismo parental: sejam realistas, peçam o impossível (que não conseguimos para nós).

Interessante que, no Ocidente, a UTI da satisfação afogou o movimento em um mar de objetos, pílulas e drogas. No Oriente, onde este recurso não se deu e onde o conflito foi agudo entre as culturas tradicionais e a irrupção deste novo amor pelas crianças, exportado pela triunfante mundialização de nossa cultura, se soltaram bandos de adolescentes assassinos (a Revolução Cultural chinesa, ou os Khmer vermelhos).

Certamente, a heroína não é a cola de sapateiro e no filme "O Bom Filho" (The Good Son) não é uma criança de rua. De qualquer forma, o fato marcante do novo amor parental para os "adultos em miniatura" é o número crescente de crianças dele excluídas. Só dois exemplos, brasileiros, que, à primeira vista, parecem contradizer a idéia de amor narcísico indiscriminado pelas crianças.

A prostituição infantil é, neste país, quase endêmica (pouco importa a discussão ao redor dos números). Deixemos de lado também as besteiras que pretensos clínicos puderam sugerir a este respeito sobre a eventual pedofilia dos clientes. A prostituição infantil no Brasil não é um prato fino e proibido para clientes tortos e exigentes.

Ao contrário, ela se oferece barata nas zonas mais populares; se destina ao consumo cotidiano: cerveja com menina. Preferiríamos acreditar que o cliente seja um perverso desregrado. Pois é inaceitável para nós que um corpo infantil seja objeto de desejo sexual. Isso é um corolário da infância moderna: por amar narcisicamente as crianças, por querer que sejam imagens de uma apatetada felicidade afastamos delas um desejo sexual que o Antigo Regime lhe reconhecia sem hesitações. E, embora a situação mude, a regra continua valendo.

O "adulto em miniatura" que amamos, agora deveria nos oferecer a imagem de uma felicidade também sexual, mas preferimos que a farsa se jogue entre anões. Assim não hesitamos em incentivar patéticas reuniões dançantes e shows no escuro entre estupefatas e angustiadas crianças de sete, oito, nove anos. Mas ainda resistimos a conceber que as mesmas crianças possam ser objeto sexual de um adulto. A coisa sujaria o encanto da festa. Como é possível, então, que neuróticos como a gente possam reconhecer em um corpo infantil um corpo sexual?

Segundo exemplo. Em um livro notável, "Death Without Weeping" (University California Press, 1992), Nancy Scheper-Hughes relata seu longo trabalho de campo na zona da mata de Pernambuco. No centro do livro está a descoberta da aparente ausência de luto nas mães das pequenas vítimas da mortalidade infantil. Scheper-Hughes constata que o luto só se manifesta se a criança vier a morrer tendo ultrapassado os primeiros tempos críticos. Ou, como se expressam as mães, quando ela tiver manifestado uma obstinada "vontade de viver".

Eis um amor materno que não parece narcísico. Será um resto do passado? Ariès, justamente, descreve, para o Antigo Regime, uma relação com mortalidade infantil similar a que Hughes verifica.

Há, para dar conta desses dois exemplos, o recurso possível à tese da Belíndia, do Brasil duplo, arcaico e moderno (cara a Roberto da Matta, por exemplo). As crianças da classe média para cima seriam narcisicamente amadas e cada vez mais como caricaturas de adultos felizes. E as crianças daí para baixo, restos arcaicos do passado, seriam amadas como antes da invenção da infância. Sua morte seria uma perda social, mas não narcísica. seus corpos poderiam ser objetos de desejo sexual pois a sexualidade lhes seria reconhecida.

Ora, acontece que frequentemente, e não só no Brasil, em condições de miséria extrema, o amor parental parece seguir caminhos diferentes do amor narcísico. É dispensado o luto da morte dos mais jovens, torna-se possível a erotização do corpo infantil, e também a exploração da criança no trabalho ou simplesmente sua venda ou abandono. E isso em circunstâncias e lugares onde o recurso à idéia de um resto social arcaico é impossível.

Como, então, a miséria real teria o poder de mudar nossa relação às crianças, ao ponto que o amor que lhes é destinado não pareceria mais obedecer às regras de nosso moderno amor narcísico por elas?

Não é por falta de narcisismo parental. É por excesso. Em uma sociedade tradicional, o que decide a dignidade subjetiva não é o real. Você é marquês mesmo se muito mal servido pela natureza ou financeiramente arruinado. Em uma sociedade individualista, ao contrário, um real ingrato pode privar facilmente o sujeito de qualquer dignidade. Por exemplo: um defeito físico ou a miséria real podem e de fato comprometem o investimento narcísico parental.

O amor pelas crianças em uma sociedade tradicional é incondicional, embora menos espalhafatoso: elas são amadas como garantias e apostas na reprodução social, como descendentes. Nosso amor narcísico, ao contrário, impõe condições. Pois a criança que, por razões reais, não pudesse corresponder aos nossos devaneios, não é mais nada. Seu corpo, desinvestido narcisicamente, se oferece ao sexo, sua morte não nos afeta, pois, de qualquer forma, ela não poderia mesmo, realmente, ser o espelho miniaturizado de nossa felicidade.

Dir-se-á que esta hipoteca sobre o amor para as crianças só se verificaria nas margens do império, aqui no Brasil, por exemplo, onde as crianças podem ser prostituídas, abandonadas, assassinadas.

Ledo engano: o Brasil, ao contrário, é um revelador. O Primeiro Mundo se diferencia de nós –neste caso– só por suas tentativas desesperadas de resistir a esta trágica implicação cultural.
Assim decretam-se em todo lugar estatutos e direitos da criança e do adolescente, para protegê-los de um amor tão louco que se torna precário, suspenso à condição que o jovem realmente possa satisfazer nosso narcisismo.

Assim faz-se –como nos EUA– do estupro de criança o crime da década. Procuram-se, até por memória assistida, lembranças de atrocidades cometidas por pais indignos, padrastos e madrastas. A suspeita paranóica e o medo aliviam e permitem afastar uma violência que é provavelmente a nossa própria contra as crianças que se aventurassem a não ser as de nossos sonhos. E será que o mundo permite que as crianças realizem nossos sonhos?

Ora, nenhum aumento estatístico da criminalidade contra as crianças parece justificar a preocupação parental. Único dado significtivo: aumentou sim, nos últimos anos, a independência das crianças, cada vez menos integradas em quadros familiares, cada vez mais sozinhas. Efeito dos tempos, da instabilidde dos casais, do mercado do trabalho, certo, mas também de um narcisismo parental que cada vez mais vê na criança o adulto. Com a implicação que sabemos, ou seja, a vontade de abandoná-la se ela não corresponder a uma espera em última instância impossível.

Assim, enfim, cultiva-se a pena e a indignação frente à imagem do miudinho faminto, destroçado, abandonado e perdido (isso também começou em 68: lembram de Biafra?). Chorar seu triste destino, assisti-lo, salvá-lo é uma verdadeira catarse social, pela qual provamos que ainda conseguimos amar a todas as crianças, mesmo as menos avantajadas. O anseio assistencial é uma vasta defesa contra um amor das crianças que, na verdade, é cada vez menos universal. Pois, se as crianças não são amadas por ser descendência, mas por ser a imagem de nossa felicidade, com efeito, que me importa a criança do vizinho? Só é amável a minha.

Em suma, as crianças estão mal na foto. Sobretudo porque a foto na qual gostaríamos que sorrissem é nossa última foto de férias. E precisaria que estivessem à altura de se dar as férias que nós nunca conseguimos viver. Para elas, o peixe brandido deveria ser de verdade, a moça ao lado deveria ter sido mesmo uma tórrida aventura, o sol deveria ter brilhado o tempo todo. Se não for assim, por que amá-las?

Mas não tem problema: logo a engenharia genética resolverá de vez os embaraços de nossa pedagogia, e nos oferecerá, como crianças, clones felizes, construídos à imagem e semelhança de nossos sonhos.

19 julho 1994

Com quanta culpa se faz a modernidade

É próprio do sujeito moderno o drama entre a autonomia como traço cultural dominante e o esquecimento do passado que ela pede


Nos últimos tempos, a imprensa -americana e nacional- não pára de interrogar nosso próximo futuro: como será nossa vida nas "superhighways" da informação? E regularmente aparecem comentários humanísticos indignados: o cabo ótico estaria preparando um futuro assombroso. Por quê? O que preocupa os críticos é a expansão planetária de uma "nova" modalidade das relações, que seria necessariamente indiscriminada e superficial: todos dialogarão com todos e sem se dizer nada de essencial.

O convívio eletrônico cai sob as mesmas críticas que sua versão caipira, o Tele-Amizade, ou seu antecessor francês, o Minitel, o diálogo humano acabaria oscilando entre uma sexualidade de sauna californiana anos 70 e, do lado mais soft, uma arte de conversação digna de preciosidades molierianamente ridículas.

Essas críticas são infundadas (basta ter frequentado um pouco o Internet americano para constatá-lo). Mas importa sobretudo que a modalidade das relações tão receada não é nem mais nem menos do que a regra das trocas humanas no mundo ocidental urbano. Isso, Simmel já notou nos anos 20 e a Escola de Chicago de sociologia repetiu: o individualismo moderno produz promiscuidade (por tornar possível a grande circulação e concentração de seres juridicamente iguais, embora diferentes) e distância (pois nenhum indivíduo quer se confundir como vizinho).

O convívio eletrônico, deste ponto de vista, é solidário de nossa cultura; ele só expande a socialidade moderna além do quadro topográfico urbano; graças a ele, poder-se-á ser cidadão e citadino da urbe mundial individualista mesmo ficando na famosa ilha deserta.

Deixamos de lado o dandismo hiperindividualista de quem cultiva sua diferença até não querer trocar a pena de ganso por um 486. Resta escolher entre duas óticas: ou ficar com Bill Gates, inventando as potencialidades ainda insuspeitadas de nossa modernidade, ou então resmungar sobre a profundidade perdida das conversas de cuia-na-mão na lauda solitária. Mas qual profundidade perdida?

Grande parte dos escritos contemporâneos sobre modernidade são saudosistas. Sobretudo quando a chave de leitura é o individualismo, como traço dominante de nossa época.

Há, primeiro, um mal entendido. Uma sociedade individualista (cf. I. Dumond, "Ensaios Sobre Individualismo") é uma associação de humanos que valoriza antes de mais nada o indivíduo, sua autonomia, sua diferença. O termo não comporta nenhum juízo moral. Ora, nós sempre ouvimos "individualista" como um sinônimo de egoísta, interesseiro. E acabamos assim interrogando a modernidade a partir de um preconceito.

Mas o mal entendido não surge por acaso. Nossa cultura individualista já nasceu culpada, e continua convencida de ser uma progressiva degeneração, um declínio do que teria sido, no passado, uma idade de ouro onde o bem comum seria o supremo valor para todos.

A sociedade dos indivíduos chora a comunidade perdida (aviso: foi republicada em 93 por Transaction Pub, a excelente tradução americana de F. Tônnies, "Comunidade e Sociedade", que, seja lembrado, não queria ser um livro nostálgico). O cristianismo, por exemplo, contribuiu decisivamente à formação individualista, chamando os prosélitos a um contato direto com Deus além de seus vínculos de tradição, família e lugar.

Ora, desde os seus inícios, ele se preocupa em promover uma moral comunitária de amor para o próximo, como se quisesse prevenir os efeitos "maléficos" do laço social que ele mesmo contribuiu a instituir. Aliás, o cristianismo preservou a comunidade que ele mesmo comprometia, hipostasiando-a no reino dos céus.

Do mesmo jeito, a cada arrancada individualista da modernidade, corresponde, em poucas décadas, a um florecer de utopias comunitárias, quase compensatórias. Foi assim na Renascença, com as utopias clássicas, foi assim no século 19, depois das Luzes, com os anseios comunitários sociais.

Tudo acontece como se fôssemos membros de uma sociedade individualista, mas permeados de uma moral comunitária. Certo, uma cultura que prefere o indivíduo ao bem comum tem dificuldade em elaborar um critério ético para a conduta de seus membros. Dumkheim (na "Divisão Social do Trabalho") teria dito que uma sociedade individualista não tem "consciência coletiva".

Mas esta inevitável incerteza ética não explica por si só nosso incurável saudosismo. Poderíamos escolher o caminho razoável de uma laboriosa confrontação, delegando às vezes ao diálogo e às vezes à força a decisão –sempre provisória– do certo e do errado (Gianni Vattimo ou Habermas serviriam de guias). Mas o individualismo prefere estar com saudades: urbano por princípio, sonha com a casa de campo e a moral austera da pequena comunidade agreste. Vagamente teísta e fiel de um deus sob medida, lamenta corais de igreja. Decidido a se reinventar livre cada dia, lamenta o esquecimento das lições do passado. Americano de espírito, chora a Europa perdida ou americanizada, etc (ao ponto que, às vezes, a nostalgia força a barra, e a coisa dá em farsa ou em horror totalitário).

Otavio Souza me escreve uma carta neste sentido, comentando as crônicas americanas publicadas nesta coluna (de janeiro a março de 94). Eu descrevia os EUA como uma sociedade ligada só pelo respeito da lei positiva, em perda de ideário comum, onde as particularidades se agrupam ao redor de interesses e traços reais. Esta é, com efeito, uma boa síntese aparente de uma cultura individualista realizada. Será que implicaria explícita ou implicitamente um juízo de valor, uma espécie de lamento da era dos ideais comunitários? Provavelmente sim. Otavio tem razão.

Há uma dificuldade cultural para pensar e inventar nossa modernidade sem saudades de um velho tempo, onde, aliás, enquanto indivíduos, não aguentaríamos um segundo. Pois somos a única cultura construída ao redor da paradoxal injunção de esquecer e recusar o que nos é transmitido. Em outras palavras, somos sujeitos fundados no recalque de nossa dívida com o passado e com a tradição. A liberdade que assim ganhamos é necessariamente culpada e produz fantasmas de idades douradas onde, sem culpa, obedeceríamos a uma tradição bem regrada.

Em suma, o individualismo engendra um mal estar propriamente neurótico –que parece aumentar com seu progresso. A psicanálise, que responde a este mal estar específico de nossa cultura, já se deu conta que a saída não é a simples (ou complicada) reconstituição do que foi esquecido. Até porque o próprio do sujeito moderno é justamente o drama que se joga entre a autonomia como traço cultural dominante e o esquecimento do passado e da tradição que ela pede: querer suprimir esta tensão é tão irrisório quanto querer resolver os problemas da modernidade por uma volta à vida tribal.

Entre a posição de censor da modernidade em nome do passado esquecido e a de vira-lata do "no man's land" urbano, entre saudades e niilismo, talvez haja um caminho. Este começa constatando que a autonomia individualista, com todas as suas consequências, é nossa forma paradoxal de obediência à cultura à qual pertencemos. O que nos deixa, em lugar de uma tradição, a tarefa de ir inventando nossa história. Sem ironia mesmo: aproveitem (um pouco)!

17 julho 1994

O grande mito do mitólogo

O rebaixamento da realidade como alienante ilusão inibe a capacidade de inventar o futuro


Na introdução de seu notável "American Mythologies" (1), Marshall Blonsky cita um comentário de Roland Barthes sobre o famoso suicídio coletivo dos fiéis do Templo do Povo na Guiana.
Barthes salientava, na época, a "quebra dos códigos" produzida por um tal excesso quantitativo em um ato normalmente singular ou circunscrito a grupos restritos (dois amantes, uma família). Ele lamentava também não saber melhor no que a massa dos coitados suicidados acreditava, "como se –Barthes escrevia– as tentativas de interpretação hoje fossem tão interessadas pelas formas... que nos parece desnecessário considerar os conteúdos".

Blonsky lembra ter anotado na margem do texto de Barthes: "Mas você poderia ter encontrado! Poderia ter subido em um avião e, junto com a imprensa, entrevistado os sobreviventes, assim conciliando suas estratégias interpretativas com uma técnica empírica de recolher notícias."
Este debate por anotações nas margens é tanto mais significativo que Blonsky –um dos pioneiros da semiologia nos EUA– justamente com este seu último livro, deixa as fascinantes verdades formais e sai pelo mundo afora para interrogar os mitos contemporâneos em sua fonte. As viagens, os encontros (de Helmut Newton a Evtushenko, passando por Rosita Missoni, Ted Koppel, Armani, Umberto Eco etc) exploram uma realidade que, por mítica que seja, não é condenada como desprezível aparência.

Por isso, embora o título seja sem dúvida uma homenagem às "Mitologias" de Barthes (1957), os dois livros podem se contrapor paradigmaticamente. As "Mitologias" ofereciam uma série de interpretações rápidas e brilhantes pelo seu poder de desmistificação. Apesar de seu carinho complacente para com o cotidiano, o "mitólogo" –como Barthes mesmo denominava sua função– queria "desfazer a significação do mito" e revelá-lo "como impostura".

O autor das "Mitologias" (preciso chamá-lo assim, pois minhas observações valem para o Barthes de 1957 e imagino que ele teria feito as mesmas nos anos 70) nos deixa a impressão que, mesmo confortavelmente lançado a 150 por hora a bordo de um novo Citroen DS 19, nunca teria baixado a guarda, anotando sem parar sua reflexões mitológicas, de medo de ser inexoravelmente seduzido pelo mito DS.

Blonsky, ao contrário, se permite, por exemplo, achar bonito um pulôver de Missoni, acaba recebendo-o de presente em seu quarto de hotel e se aventura até a usá-lo pelo menos uma vez nas ruas de Manhattan. Como os pulôvers de Missoni, o Citroen DS 19 era fantástico. Posso testemunhar: dirigi um de Milão a Kabul, ida e volta (quando ainda dava para atravessar estas paragens). Será que esta cumplicidade com o objeto mítico compromete o trabalho do mitólogo? Pode ser, mas resta perguntar qual é o efeito e o alcance do trabalho do desmistificador.
Acontece que, relidas hoje, as "Mitologias" de Barthes parecem elas mesmas constituir um mito como aqueles que elas denunciam. Seu autor (mesma ressalva feita antes) é um herdeiro do flâneur de Walter Benjamin que é seduzido pela fantasmagoria moderna das mercadorias, mas não tem direito de comprar. Ele vem para festa, mas não dança, abstenção que o autorizaria a entender o que é verdadeiramente a festa.

Quem dançasse sacrificaria sua inteligência crítica e não teria como passar de colunista social. Este mito do intelectual mitólogo teria para mim como emblema um homem pálido de terninho tergal preto, lendo "Das Kapital" em baixo de um guarda-sol em uma praia italiana nos anos 60. O mito diz que, para pensar, precisa se afastar da massa e de suas paixões. O paradoxo, aliás, é que justamente quem assim se afasta, persegue e realiza a maior paixão de massa dos indivíduos modernos, que é a de se diferenciar.

Mas, sobretudo, o mito do mitólogo é solidário de um corolário básico da modernidade segundo o qual a verdade se articularia melhor no isolamento monástico, pois só poderia ser fruto de uma razão subjetiva não sujeitada à tradição, nem contaminada pelas aparências enganadoras de uma realidade traiçoeira e alienante.

Esta oposição de verdade e realidade contribui singularmente a um panorama cultural onde –como notava Barthes– o formal prevalece sobre os conteúdos; marxistas desprezando qualquer modificação sociológica da estratificação social em nome da estrutura de classe, psicanalistas sobrepondo fórmulas mágicas à complexidade das vidas ou teorizando quadros clínicos jamais encontrados, antropólogos estritamente primitivistas ou mesmo fóbicos de viagem. Cada um reconhecerá os seus.

Se a realidade contamina e obnubila a retitude do pensamento, jogar o jogo é alienante. Mas alienante em relação a quê? Qual incrível peso do ser, qual pretensa natureza humana ou qual tradição simbólica valendo como natureza seriam ocultadas por nossos envolvimentos imaginários?

A idéia de alienação surge curiosamente logo quando a modernidade se constitui. O indivíduo autônomo de nossos tempos não coincide mais com um conjunto preestabelecido de obrigações simbólicas, por isso ele é obrigatoriamente narcísico: sua consistência subjetiva em princípio não é o peso da herança recebida, mas o fruto de suas contínuas tentativas de se manter desejável aos olhos dos outros.

Alienante? Que o sujeito de uma sociedade tradicional possa nos achar alienados, extraviados da reta via das tradições por nosso narcisismo é normal. Devolveríamos a ele, aliás, o cumprimento, pois justamente pretendemos que nossa cultura nos libertou das tradições que alienavam nossa autonomia de indivíduos. O paradoxo é que nós mesmos passemos a nos estimar alienados e a alimentar o mito do desmistificador.

É o mal-estar da modernidade, pelo qual ela não consegue se livrar do espectro nostálgico de um mundo menos movediço, de mais fácil controle social, em suma de um mundo tradicional cuja estabilidade perdida –comparada com o jogo de espelhos da fantasmagoria moderna– faz figura de verdade ou de autenticidade. Preferimos denunciar nosso hedonismo narcísico como falso e alienante do que encará-lo como sendo nossa realidade e verdade cultural.

Para isso, há uma justificação: uma cultura narcísica parece incapaz de assegurar seu próprio controle social e ético.

Desconhecê-la como cultura ou então considerá-la como um simulacro enganador, eis o que permite moralizá-la, mas fazendo apelo a verdades, autenticidades e valores invocados como deuses antigos e assim reduzindo o cuidado ético a uma forma de nostalgia patética e ineficiente. O melhor exemplo permanece sendo o desfile dos congressistas no processo de impeachment, gritando: pela ética na política, voto sim!

O verdadeiro regulador ético, no caso, foi narcísico: a imagem que a televisão transmitia e sua apreciação pelos eleitores. Ora, não é nada certo que uma sociedade sem valores preestabelecidos, regrada por ajustes narcísicos, tenha que ser um deserto ético. De fato, é sobretudo certo que o rebaixamento de nossa realidade cultural como leda e alienante ilusão inibe nossa capacidade de invenção, propondo encontrar balisas na gaveta simbólica das heranças (nas quais de fato não acreditamos mais) e não, como se esperaria, na invenção (imaginária) do presente e do futuro.

Resta entender e encontrar, evidentemente, por quais caminhos e conflitos o jogo narcísico que nos constitui e reúne pode vir a dar alguma forma ética às condutas.

Mas, antes de mais nada –para que nossos anseios de transformação e controle social não sejam simples expressão do mal-estar moderno–, precisa desmistificar a desmistificação. E substituir ao mitólogo uma nova forma de flâneur, menos abstinente e desconfiado, assumidamente moderno. Blonsky, por exemplo.

As fábricas do imaginário contemporâneo que ele explora para nós talvez sejam lanternas mágicas, mas as sombras que elas projetam não nos alienam traiçoeiramente. Elas fabricam o único mundo do qual somos sujeitos, uma realidade que é também nossa verdade.

05 junho 1994

Lula como Antígona

O candidato portou-se como a personagem grega diante da lei


É frequente que se ironize sobre o legalismo da sociedade norte-americana. Eu mesmo, nesta coluna, já comentei que os EUA poderiam estar evoluindo para uma forma de desagregação social onde uma multiplicidade de separatismos declarados (étnicos e sexuais) só se relacionariam por uma minuciosa contabilidade jurídica de perdas e danos. Este panorama é parcial e só indica uma tendência.

Mesmo assim, ele representa uma solução –e não necessariamente a pior– ao destino normal de nossa cultura. A liberdade dos indivíduos implica a renúncia ao patrimônio comum de ideais, memórias e crenças que permitia a existência de coletividades. Este patrimônio aparece aos indivíduos como a carga pesada de uma tradição que deve ser recusada para que se afirme a liberdade. Se precisarem de valores, os indivíduos preferem valores fundados no real dos corpos (a cor da pele, o sexo), valores que não devem a ninguém.

Corolário desta situação cultural próprio ao Ocidente: as leis que regram nossas relações sociais são necessárias se imprescindíveis, mas sempre opináveis. Não se fundamentando em uma tradição coletiva eventualmente sagrada, elas aparecem como simples prescrições cuja autoridade vale só até prova do contrário.

E esta prova está ao alcance de cada um, pois nosso foro íntimo está acima da lei. Para o membro de uma sociedade tradicional, desrespeitar uma lei é uma tragédia subjetiva que nada tem a ver com nossa desenvoltura quando decidimos que é melhor e mais justo queimar um sinal vermelho do que ser assaltado, ou então sonegar renda do que pagar um imposto que achamos iníquo.
Mas o caminho é longo, vai de um mundo onde as leis da polis coincidiam com os valores da comunidade, ao nosso mundo, onde se apagam os valores simbólicos comunitários e as leis se opõem ao julgamento de cada um.

Nem está certo que este caminho tenha sido inteiramente percorrido. Duas figuras são tradicionalmente exemplares de seus percalços: Sócrates e Antígona.

Sócrates enfrenta uma condenação à morte que julga injusta. Incompreensível para nós, ele prefere aceitar sua própria execução do que comprometer a lei, fundamento simbólico da pólis. Antígona também enfrenta a morte, mas como preço que está disposta a pagar para obedecer a uma lei (a de sepultura dos mortos) que ela situa acima das leis da pólis.
Lula, declarando: "entre a lei e a coisa justa e legítima, eu sempre disse que o justo e legítimo é muito mais importante", deu uma de Antígona moderna.
Porque será que sua afirmação produz indignação?

Ao final, estamos todos convencidos da supremacia do que é justo sobre o que é legal. Ninguém, no mundo moderno ocidental, confunde as leis com valores absolutos que, aliás, nossa cultura dispensa. Ao contrário, o nosso individualismo submete a lei à constante apreciação de nosso tribunal interior. O que é legal não vale por si, deve ter nossa aprovação.

Sem isso, que indivíduos seríamos? Qual seria nossa diferença dos membros subservientes de uma comunidade tradicional? O hiato entre a lei e nosso foro íntimo, é, aliás, o que faz que nossa cultura tenha história. Quando há discordância entre os dois, eis que pega a faísca da mudança social.
Mas resta saber de onde se autoriza a justiça em nome da qual julgamos a lei de todos os dias. Antígona, filha de uma sociedade ainda tradicional, vivia pelo menos uma tragédia clara, entre leis da pólis e Lei superior da tradição.

Mas, para nós, indivíduos sem tradição, qual tribunal –fora a inspiração de nossa singularidade– pode sentar em nossa consciência, quando julgamos a lei? Sensivelmente, estamos dispostos a aceitar que cada um desrespeite a lei por seu interesse particular (à condição que isso não comprometa nossa liberdade). Mas nos incomoda muito mais que este o faça em nome de um princípio moral superior, pois este ameaçaria nossa liberdade.

Assim, embora com mau gosto, FHC, respondendo a Lula, pode evocar Hitler e Collor: se sairmos do amparo da legalidade, estamos expostos ou ao capricho de um interesse particular (Collor) ou a uma trágica volta, totalitária e necessariamente farsesca, da sociedade tradicional (Hitler).

Ora, nossa modernidade mais recente oferece duas soluções para definir um tribunal interior que não seja nem o interesse particular nem a farsa totalitária. A primeira pretende que haveria uma definição abstrata do homem que poderia se situar acima das leis: são os direitos humanos. Mas a questão não é simples: se os direitos humanos são nosso patrimônio simbólico, eles são a forma sub-reptícia de uma tradição que deveríamos recusar em quanto tal. Por isso os reduzimos ao mínimo e tentamos pateticamente fundamentá-los como simples expressão, não cultural, mas natural das necessidades de nossos corpos. Em uma recente entrevista (Folha, 03/04/94) Umberto Eco se fazia porta-voz desta tendência: "É possível constituir uma ética sobre o respeito pelas atividades do corpo: comer, beber, urinar, defecar, dormir, fazer amor, falar, ouvir, etc.". É a moral do não quero saber o que é certo ou errado, só quero que todos tenham arroz, pinico e camisinha.

O outro recurso, que interessa mais aqui, consiste em delegar à própria história, que vamos inventando, a tarefa de fundamentar nossas escolhas, apostando que nossa história de indivíduos se constitua em uma sorte de patrimônio não de tradição (que não queremos), mas pelo menos de experiência. Ela seria assim o horizonte comum necessário ao diálogo onde os princípios morais, superiores às leis, se decidiriam segundo as lições do passado.

Porque não? O problema é que nossa cultura não é só a da renúncia ao patrimônio simbólico da tradição. Ela é também a do esquecimento da história, do patrimônio de experiência. O indivíduo não quer ser livre só da lei tradicional da comunidade, ele quer ser livre também de seu passado.
Estávamos, aliás, acostumados a pensar que, no mundo ocidental, pelo menos na Europa ainda tivesse a esperança de substituir a tradição esquecida pelas lições do passado. Mas Berlusconizou; um ex-camisa preta de República de Saló ascende a um cargo de governo, o próprio primeiro-ministro declara que o fascismo "tinha traços racistas" (sic) etc. Sem esquecer a valsa de ex-stalinistas ou tzaristas iluminados no leste. No Brasil, aliás, a memória é curtíssima. Se precisar, é só considerar as alianças feitas pelos dois candidatos à presidência que lideram as pesquisas.

Assim talvez, a escolha norte-americana mereça mais atenção e menos ironia. Pois –ao que parece– não há mais alimento para continuar acreditando que as experiências do passado sejam uma referência moral comum. Resta então que não há sociedade dos indivíduos possível sem o respeito minucioso e forçado das leis da polis, que são, em nossa cultura, as únicas leis. É normal, certo, em nome do que é justo, querer mudá-las, mas na falta de um critério comum do que é justo, as próprias leis devem regulamentar sua mudança. Salvo processo revolucionário: mas quem topa?

24 abril 1994

Adolescência parece sem fim

Desencanto que conduziu Kurt Cobain ao suicídio atesta um desejo de nada que seduz os jovens cada vez mais

Em um quarto arejado, cortinas combinando com o cobertor e as almofadas, TV em cores, vídeo, uns três vídeo games meio estragados de pisar em cima dos controles.

Também uma coleção Barsa obrigatória, prancha de surfe na parede, CD portátil com caixas de som, uns 15 bonés americanos –Chicago Bulls e não sei das quantas– camiseta da seleção, taco de baseball comprado em Nova York.

Ainda "t-shirts" meio sujas no chão, junto a cuecas e meias de tênis, raquete de duty free e vai andando, cabelos compridos que nem esfregão de cabeça pra cima, ou então raspado com máquina um ou dois, bermudão (não tão xadrez nem comprido assim, que é vulgarzinho) camiseta comprida e larga como camisola, o adolescente nirvânico escuta: "Nevermind, I hate myself".

Não diz nada de novo. Os lugares-comuns do adolescente moderno –quero dizer de 200 anos para cá (leiam Leopardi, grande poeta por volta de 1930 para verificar)– se seguem e repetem como grãos de rosário. O mundo que nos foi deixado é uma bosta, olha só a Amazônia, o buraco de ozônio, as baleias coitadas. Os pais só pensam em fazer dinheiro. Melhor morrer jovem que envelhecer assim. A vida é outra coisa, seria se desse para sair daqui.

Não se sabe o que, glória, dinheiro, grandeza, vagas aspirações, militar não que é careta, escritor ou intelectual não que é chato de galocha. Cantor é bom mesmo, mas como é que se chega lá? É tudo uma bosta de qualquer forma. A maconha é brincadeira. Por que não uma heroína para lhes mostrar o que fizeram de mim e do que sou capaz?

Pois é, nada novo mesmo. O que é novo é a grana. Adolescente tem dinheiro, pelo menos aquele que escuta no quarto arejado, cortinas coordenadas etc. Vide acima.

O tormento da adolescência é normal. Mas agora se tornou indústria. E dá lucro certo.
As ações da adolescência estão em alta constante. A adolescência um pouco menos. Milhões de quartos arejados são milhões de camisetas, pranchas, raquetes, tacos e discos que gritam: "I hate myself, I wanna die".

E bota volume, já que nem todos podem mostrar o pinto, quebrar amplificadores, guitarra e microfone ou cuspir na televisão no meio do um show.

Com um pouco de sorte, quartos muito menos arejados vão ecoar do mesmo jeito, não porque os adolescentes aí teriam tempo para os mesmos problemas, mas porque no mínimo, perdidos na miséria objetiva, podem tentar se parecer com aqueles que desfilam de motorista.

As questões são as mesmas, mas, sem indústria, dava para buscar respostas outras.

De qualquer forma, em nossa cultura, não tem saída para adolescente, só dando um jeito para pelo menos parecer diferente.

Mas a diferença se esperaria que fosse diferente para cada um. Ela já se tornou de massa logo após 68. Mesmo assim, Dylan e Joan Baez não cantavam para os olhos vidrados do adolescente farto, deitado na cama de quartos arejados etc.

Era, ao contrário, para acordar. Que, atrás de "Mr. Tambourine Man" fosse a turma toda fantasiada de Woodstock, é certo. Mas era de manhã, "a jingle-jangle morning".

A massa da época era artesanal. E o molde era um desejo (dos pais, naturalmente) de que houvesse um mundo melhor. A massa de hoje é industrial, e vai direto ao "quid": por que inventar projetos e saídas quando a própria esterilidade da adolescência vende tão bem quanto, se não melhor?

As questões necessárias e banais da adolescência, como deixá-las, desde então, como ultrapassá-las se são palavras de ordem para um mundo encantado de milhões de dólares?
Dá vontade, aliás, de ficar adolescente para sempre. E muitos ficam mesmo: aos 20 anos ainda passam trotes de calouro, outros esperam embaixo do palanque da UNE para pedir autógrafo. Chorando sobre a miséria da herança recebida, não querem saber nada de propostas e de ação, preferem a adolescência de massa: "Descontente procura star, urgente".

Quem fica adolescente "forever", coitado, é aquele que a indústria arregimentou para cantar a ladainha, adolescente profissional. Aí o problema é sem saída, ou quase. Como é que vou ser contra, se ser contra é o maior negócio? Dá até para fazer um show ruim de doer ou vários, dá para tratar de débeis mentais e lôraburras os que compram os discos. Com esta barata, Fernando (e Gabriel) o que vai fazer?
"Goodbye Kurt Cobain, have a nice last trip."

P.S. - Para quem se perguntar, como acontece que os pais se perguntem, de quem é a culpa, ela não é toda só dos corvos da adolescência que vendem niilismo barato.

Somos loucamente necessitosos de contemplar nossa própria felicidade, ao ponto de querermos encontrar sua imagem em nossas crianças e adolescentes. Isso é regra em nossa cultura há tempos. Por isso, se querem saber por onde anda nosso desejo, é só olhar para os adolescentes, pois sua aspiração à diferença se resolve sempre, em última instância, em uma respeitosa identificação com o que gostaríamos de ser. Mesmo que eventualmente não queiramos sabê-lo.

A imagem um pouco bovina dos novos consumidores que não trabalham é o nosso sonho. Se nos parece caricatura, é porque salienta os traços menos confessáveis: a droga é caricatura (apenas) de nossos prozaks, a ignorância é caricatura de nossos esquecimentos, a desenvoltura é caricatura de nossa malandragem.

Hoje, no lugar da imagem da felicidade, a foto revelada mostra o rito de uma infelicidade abstrata, um desejo de outra coisa tão rarefeito e histericamente vazio que é propriamente desejo de nada.

13 março 1994

A loira de Ancara e as go-go girls

Algumas notas sobre a evolução do desejo e do estado da arte do strip-tease nos nossos dias

Assisti a um strip-tease pela primeira vez mais de 30 anos atrás, por engano. Um engano de meus pais. Foi, inesperadamente, em Ancara, Turquia. Ao fim de um longo dia de carro, paramos no que devia ser então o único hotel decente da capital turca e, por facilidade, jantamos no restaurante do roof-garden do mesmo. Eram anunciadas atrações durante a refeição, certo, mas era difícil prever que estas compreenderiam o audacioso strip de uma profissional certamente importada, loira e comprida. Lembro da pista circular no meio das mesas, do cenário simples (uma cadeira de praia), da música ("Petite Fleur") e sobretudo da noite insone que seguiu para mim e meu irmão. Não lembro, e não devia haver, sonhos eróticos particulares, nem mesmo uma excitação propriamente erótica: era mais a inquietude sensação de ter contemplado um desejo sem que se soubesse do quê.

Apenas sete anos depois, em um barzinho da Eighth Avenue, em Nova York, go-go dancers, tão nuas quanto a loira de Ancara, se agitavam acima de cervejas já mornas, minha e de alguns amigos. O papo corria solto e as bailarinas deviam se sentir sobrando. Estranho, pois, de fato, nossa idade, a época e o lugar podiam parecer mais promissores: já valia o costume de enfiar uma notinha verde na calcinha e a possibilidade de armar um programa estava pelo menos no ar. Talvez justamente por isso, aliás, o efeito fosse nulo.

A grandeza da loira de Ancara estava em sua absoluta distância, ao menos para mim. Mas não era só uma questão de idade. Apesar de meus 13 anos, não era totalmente ignaro. Imaginava que a lascívia do strip não podia ser a encenação cotidiana de um desejo autêntico; ao contrário, era fácil romancear o tédio de cada dia, a clausura da jovem nórdica naquele hotel pretensioso e cafona, em uma cidade poeirenta e sem charme, e uma espera. O que ela queria, a loira de Ancara? Qual homem, quais gestos podia esperar? O strip parecia dizer, em suma, um desejo misteriosamente suspenso. Queria ser desejada, certo, mas além disso seu desejo era um enigma. Por explícitas que fossem suas mímicas, restava enigmático o eventual caminho pelo qual seria dado a um homem satisfazê-la.

As go-go dancers de sete anos depois não queriam deixar esta incerteza. Seu reboliço era ad personam, e o convite era direto a um ato sexual libertador. Só não se sabia se era com a gente e com as cervejas sobre as quais se acocotavam.

O que quer a stripteaseuse? Eis a questão. É certamente a questão que se perguntou Herodes, a vítima da mais famosa dentre elas, Salomé. Só para lembrar os fatos, ou seja a versão dos Evangelhos: Herodes prendera João Batista embora o respeitasse e temesse; entretanto ele deitara com a mulher de seu irmão Filipe, Herodíades, a qual tinha uma filha Salomé. Herodiades não gostava de João Batista, pois este não aprovava sua relação com o cunhado. Assim ela recorreu aos charmes de Salomé que mandou dançar na frente de Herodes, de tal forma que este se dissesse disposto, ao fim da dança, a lhe outorgar qualquer coisa que ela pedisse. Salomé, instruída pela mãe, pediu a cabeça de João Batista e Herodes, engajado por seu juramento, não pôde negar. A coisa não lhe agradou, e ele acabou preocupado com a volta do espírito do Batista que podia imaginar ser reencarnado em Jesus. É aliás, esta aparentemente a razão desta história receber algum destaque na obra dos evangelistas.

Com poucas exceções (alguns quadros famosos do Tiziano, sobretudo) estas indicações evangélicas esperaram até o romantismo europeu tardio para fazer sucesso. Como se sabe, a coisa começou com Heine e continuou com Flaubert que consagrou ao tema o terceiro de seus magistrais "Trois Comtes", "Herodias". Flaubert não se afasta do conto bíblico, colocando o acento sobre o drama de Herodíades que empurra sua filha Salomé para frente na tentativa de reacender em Herodes uma chama que já está se extinguindo. Na mesma linha está Huysmans, em "A Rebours". A personagem central, des Esseintes, é um fanático de Salomé e dos dois quadros de Gustave Moreau e "A Aparição" está no Louvre). E de fato a Salomé que o seduz tanto obedece aos princípios estéticos de Moreau, sobretudo o da Bela Inércia: estou aqui, me desejem! A sedução emana deste enigma. Mallarmé, nos fragmentos de "Herodiade", particularmente na cena entra Herodíades e sua ama de leite, nos deixa um retrato da jovem Herodíades ao mesmo tempo fascinada e horrorizada por sua própria beleza e virgindade, como suspensa na espear de algo que ela mesma não sabe. Embora Mallarmé não nos tenha presenteado com a evolução da história –salvo pelo fragmento sobre a degolação do Batista–, pode-se imaginar que a jovem Salomé não seria diferente: para ambas, mãe e filha, a cabeça de João é um "porque-não?" oferecido a um desejo que talvez seja só desejo do desejo dos outros.

Mas quando se fala em Salomé, normalmente, o que se tem em mente é a "Salomé" de Oscar Wilde e a ópera de Strauss cujo livreto nela se inspira. Wilde muda a história. Ele imagina que Salomé seja loucamente apaixonada por João Batista, que naturalmente a rechaça. Salomé dançará na frente de Herodes para obter a cabeça do Batista e finalmente beijar o morto na boca. O que provocará a indignação e o ciúme de Herodes, o qual mandará Salomé ser literalmente esmagada pelos escudos de seus guardas. Quem quiser mais detalhes sobre os destinos de Salomé no romantismo pode(rá) ler o capítulo ("Bizâncio") que Mario Praz consagra quase inteiramente a Salomé em seu livro magistral: "La carne la morte o il diavolo nella letteratura romantica".

Para nós, importa salientar as duas linhas que já se opõem de um lado a linha Flaubert-Huysmans, pela qual o desejo da stripteaseuse é dramaticamente suspenso. Do outro, a linha Wilde-Strauss, pela qual o desejo da stripteaseuse é claro: o Batista ou eventualmente sua cabeça. O primeiro é aquele da loira de Ancara, o segundo é aquele das go-go dancers de Nova York.

De fato, cada strip oscila provavelmente entre a apresentação da bela inércia que se desnuda e deixa inteiro o enigma do desejo e, por outro lado, a sugestão de um gesto, uma coisa ou um corpo que poderiam responder ao desejo da stripteseaseuse. Mas também uma história do strip-tease deveria poder ser escrita segundo estas duas linhas.

De uma certa forma, a segunda linha parece progressivamente prevalecer. O strip evolui: de público se torna particular, programado (as cabines individuais, quem não conhece pense em "Paris, Texas" de W. Wenders). Aos poucos, até nas cenas parisienses onde nasceu, ele parece perder espaço para a mímica ou a encenação direta da relação sexual. O mesmo vale para sua versão caseira (que faz o sucesso das lojas de lingerie): de regra ela prepara um ato sexual previsto de antemão.

Não tem nesta evolução nenhuma degenerescência. Só o reflexo de nossa história: o strip nasceu, cem anos atrás, erotizando o enigma do desejo feminino. Em geral, aliás, o enigma do desejo estava na ordem do dia desde o começo do século XIX. É o eclipse definitivo do Antigo Regime, o triunfo do individualismo e o momento em que Hegel define o desejo humano como desejo não de alguma coisa, mas do desejo dos outros. A coisa não estranha, pois nesta virada histórica de nossa cultura, os outros de repente vem a faltar. Passa-se de uma sociedade onde as relações sociais definiam os sujeitos a uma sociedade onde o indivíduo deve se definir sozinho. Resta-lhe então desejar antes de mais nada que os outros reconheçam seus esforços, ou, em outras palavras, desejar o desejo dos outros. Pode-se imaginar que o homem, nesta situação, tenha-se dado melhor, pois lhe sobrava pelo menos a responsabilidade reconhecida do pater familias: um homem saberia ao menos pelo que procurar o reconhecimento dos outros. Mas o que ia querer a mulher, agora que a rede social não decidia mais de seu destino, de seu espaço e dos limites de seu desejo? O que ia desejar a mulher que deixava até seu lugar na família, saia de casa para entrar no mercado do trabalho? O strip talvez surja no fim do século como a profissão mais próxima possível da feminidade: à mulher só sobrava desejar ser desejada, e ser desejada não pelos seus atos, mas por sí só, por sua bela inércia. Seu desejo só podia configurar para os homens um apavorante enigma. Encará-lo foi o que fez Frend, por exemplo, lançando mão de uma interrogação que virou palavra de ordem (que hoje está ficando azeda): o que quer uma mulher? Outros, na mesma época, preferiram tentar manter e reinstaurar uma ordem social, afirmando uma inferioridade da mulher, o que de fato era uma maneira de atribuir à mulher um lugar social (inferior, por exemplo) e parar de se angustiar com a metade do gênero humano largado sem amarras e sem que se soubesse paar desejar o que.

O strip, nascido com o desejo moderno, talvez morra junto com ele. Nosso fim de século parece, com efeito, estar encontrando finalmente uma resposta à questão que o século passado abriu; o desejo, solto e perplexo no crepúsculo da sociedade tradicional, parece encontrar hoje cada vez mais um objeto, adequado e nada enigmático, nas coisas e nos corpos. Salomé hoje poderia querer uma cabeça (não aquela do Batista, nem, mais geralmente, aquela que está entre os ombros). Ou então talvez se contente com um Prozac.

Mas o recurso a Salomé não vale só para ilustrar as duas linhas do destino do strip: apresentação moderna de enigma do desejo ou contemporânea prosaica solução do mesmo. Serve também para se perguntar quem quis o strip no primeiro lugar. Justamente, no relato bíblico, quem manda Salomé dançar não é Herodes, mas Herodíades, mãe da stripteseaseuse e amante envelhecida e preocupada de Herodes. A versão politicamente correta pela qual ogros masculinos exigem humilhantes e sugestivas danças de beldades constrangidas é assim contestada. A história poderia valer, aliás, não só para o strip. Pois a lição de Herodíades e Salomé diz que, atrás de uma mulher que encena o desejo feminino, de fato não há tanto o desejo masculino, mas antes o desejo de uma outra mulher, uma Herodíades mais feinha, menos dotada ou mais púdica, que aponta a stripper, a atriz, a modelo para o homem, para que ele não pare de reconhecer e interrogar a novidade (do século XIX) que é o enigma do desejo feminino. Se a coisa não parece ser hoje percebida, é porque o enigma está acabando. As loiras de Ancara tornam-se go-go dancers da 8th Avenue. Isso também não porque o homem quis; mas porque na festa pós-moderna até as mulheres estão conseguindo desejar coisas concretas e explícitas.

Falando em politicamente correto, aliás, vale lembrar que tease, em inglês, é sinônimo de harass (de sexual harassement, constrangimento sexual). Strip-tease, então, é o constrangimento sexual quase bicentenário ao qual os homens foram expostos nem tanto pelas mulheres, mas por uma modernidade que deixou a mulher sem outro desejo do que aquele de ser desejada. A situação começando a ser talvez outra, não estranha que as mulheres possam achar atravancador o desejo que os homens lhes manifestam.

Post-scriptum: que hoje haja strippers masculinos não implica nenhuma feminização do homem. Este não está na posição da mulher do século 19, a ser desejado como um enigma. Ao contrário, todo mundo parece saber o que desejar. E os strippers masculinos respondem a mulheres que sabem o que elas querem. Portanto não há strip masculino, só há homens go-go dancers.